quarta-feira, 11 de março de 2015

O Álcool e a Alma

Por Alexandr Dugin


 Estudar nadando, estudar nadando,
Aprender a beber vodka da garrafa,
E cedo cedo de Maupassant
Ler só uma história de "The Horla"
[Evgeny Golovin]

Os Segredos do Espírito

O vinho é uma substância tabu em muitas civilizações sacras. Ao seu uso tradicionalmente se associam muitos rituais e cerimônias. Indicativo de que a palavra "espírito" vem do latim "spiritus" - espírito. Os cabalistas também associaram o vinho com aspectos interiores e esotéricos. Em Hebreu, a palavra "vinho" e "mistério", "segredo", têm o mesmo valor numérico, e portanto, são sinônimos no sentido místico. Este assunto é mais amplamente desenvolvido na tradição islâmica. A Sharia, lei exotérica, das regras da religião externa estritamente proíbe aos islâmicos beber álcool, sendo considerado um pecado terrível. Em total contraste a esta forte posição está a tradição Sufi, dentro do islamismo, na qual, pelo contrário, beber vinho é fortemente louvável, e de vários modos, as virtudes do álcool são glorificadas. Pelo álcool - a propósito, a palavra em si tem origem arábica - os sufistas, islâmicos esotéricos, chamam sua "doutrina secreta", "doutrina interna iniciatória". Desde que o álcool é proibido para externos e permitido para internos,o povo da Sharia lida com a aparência de verdade, enquanto o povo tarikata - com ela própria.

Mas, claro, uma simples intoxicação não garante o alcance da verdade obrigatória. Este é apenas o meio para ela. E como todo caminho, pode ser um sucesso, mas pode acabar em nada. Não exatamente em nada, vamos nos corrigir. Se um homem passar ao caminho, ele nunca será o mesmo ainda que venha a se perder. Um passo adiante é uma nota irrevogável. É um processo irreversível. Portanto, os ensinamentos iniciatórios são cuidadosamente camuflados por véus impenetráveis de alegorias e fórmulas obscuras.

O Islã providencia uma importante imagem da realidade. A circunferência - a sharia, o exterior. O centro do círculo - a verdade, hakikat. O raio da circunferência para o centro - a tariqa, que significa em árabe "o caminho". E é este raio que é chamado na língua da tradição iniciatória "vinho". E é idêntico à iniciação secreta. A propósito, na base da mesma lógica os hindus chamam as doutrinas iniciatórias do Tantrismo de "o caminho do vinho".

O mesmo paradigma é a base do ritual das práticas de bebidas dos famosos taoístas na tradição chinesa e dos mistérios de Baco na Grécia Antiga.

Um Sonho Espiado

O vinho não é apenas um símbolo, uma alegoria. Na tradição tudo está interligado. Se algo é relacionado a algo, então estas coisas estão praticamente relacionadas também. Em outras palavras, se o álcool é sinônimo de iniciação, significa que a ação produtiva disto no homem em geral deveria reproduzir um cenário de iniciação. Embriar-se - é um caminho, um caminho para dentro.

E de fato, o álcool produz um tal efeito nas pessoas que elas sentem como que entrando no seu próprio ser. Assim, embriagar-se é como sonhar. Nisto todas as coisas são o mesmo como num sonho ganham significado especial, previsível e vago ao mesmo tempo, palavras e sons são ouvidos de um novo modo, a fluidez das associações e meias-visões capturam os bêbados. Itens e sentimentos mudam suas proporções. Uma razão insignificante causa uma reação dissipada, ameaças ou perigos são ignorados. Um bêbado escala o telhado, caminha em muros, sobe em uma árvore, num tubo. Corre na autoestrada. Ataca o mais forte. Em geral, comporta-se de um modo especial quando o mundo externo está bem menos pesado e denso, menos fixo e concreto com relação ao estado consciente. É um sonho, mas um sonho com testemunho. A presença da testemunha deste "sonho" está na base de um remorso da ressaca. O homem, mesmo enquanto lembra do que aconteceu durante a bebida, sente remorso, como se tivesse feito algo inconsciente. Este é o resultado do efeito do "segundo estado", que escapa da razão crítica antiga.

Dormir e embriagar-se são tipologicamente próximos. Um homem entra neles como em áreas da sua alma.

Mestres do Álcool

Eleva-se um sério enigma. Se beber é tão positivo de um ponto de vista espiritual, por que os bêbados produzem impressões repulsivas, causam nojo e desconforto, ao invés de deleite? Falta de vergonha, olhos virados, boca sebosa e contrações musculares idiotas, palavras inarticuladas, fungadas, raiva, porca sexualidade, travessuras repulsivas e desajeitadas a não ser para si mesmo...

O ponto é que o álcool em si só abri os portões de dentro, mas não providencia segurança no caminho e não garante a chegada no destino. Nas civilizações tradicionais os ritos alcoólicos foram mantidos de acordo com um cenário estritamente definido.

Eles eram precedidos por treinamento iniciatório, durante o qual foi mantido um padrão e leis de viagem alcoólica, providenciadas dicas importantes, referências e objetivos, e listados riscos. Além do cenário, durante a intoxicação ritual, necessariamente tinha que estar presente um "condutor" ou um "professor" que liderava o bêbado (ou os bêbados) através do labirinto do mundo interior, mantinha-os de um certo modo, dava conselhos e locais apropriados.

O álcool dissolve a ilusão material da corporalidade irresistível, que determina o modo de existência na consciência cotidiana. Mas ao mesmo tempo em que se opunha ao dormir normal uma pessoa mantinha um certo controle sobre a realidade física, que deveria teoricamente passar por vários estágios dissolutíveis sob a supervisão de uma mente não-dormida. Nisso está o sentido da mágica influência do álcool.

Mas para passar por todos os estágios deste caminho, deste "flutuar", deve-se ter atenção muito concentrada e consciência desenvolvida. Caso contrário a carne dissolvida só fará mirar espaços intermédios entre o corpo e a alma.

É isto o que aparece na mente de ordinários e familiares bêbados, vislumbres. Esta área intermédia é muito interessante. Depois de tudo, é dentro dela que o evento mais importante de intoxicação acontece. Aqui o álcool faz devanear, claro, cai em um vórtice espiralado.

O Átrio (Atrium)

A tradição monástica ortodoxa - em particular, Abba Dorotheus, e depois todos os hesicastas - dão uma descrição detalhada da natureza delicada do homem.

Esta tradição, em contraste com o judaísmo e com o Yoga indiano, põe o "embrião da alma", "o osso da imortalidade" no coração, e não na base da espinha.

Isto é devido ao fato de que a iniciação cristã analisa o segundo estado de dedicação (iniciação) quando uma força vivamente misteriosa se ergue do cóccix para o coração.

Assim a fina fisiologia corresponde ao caso normal da constituição de todos os cristãos ortodoxos batizados (católicos e protestantes têm isto diferente, mas isso é outra história), e a fase da ascensão deste poder pertence ao estágio anterior de "catecúmeno".

Nós podemos identificar uma pintura do círculo islâmico - sharia, tariqa, hakikat ou círculo, raio, centro - com o corpo humano. A pele - "casacos de pele", casca, "manto epidérmico" - um círculo. O tato - a principal parte "terrestre" da percepção desperta. O coração - o centro, o pólo. E entre eles estão os planos físicos e os órgãos internos. A propósito, Abba Dorotheus providencia um símbolo do círculo, a circunferência do rario e, em relação a ordem da realidade. A mesma figura - com alguns itens historica e misticamente importantes - abre com o manuscrito do protopadre Avvakum.

O papel mais importante na fina fisiologia está com o átrio. É simbolizado pela "serpente enrolada ao redor do coração", pelo "dragão antigo que guarda o tesouro". O coração - a alma. O átrio - um espaço que guarda a entrada.

Na base disto os padres de Smart Doing alertaram contra "o desenvolvimento do átrio líquido". Por causa disso vêm dois excessos - agressividade e gozo. Agressividade- masculino, o começo inflamado. O gozo - feminino, úmido. No mais profundo interior da alma se esconde a luz atrás do véu do átrio da serpente. E se a operação dentro da entrada não é executada cuidadosamente, forças falsas surgem da personalidade do praticante. A experiência falha.

Em todo caso, o significado é estritamente idêntico. O átrio é a casca da alma, e a expansão da energia da alma para fora, na área do átrio, gera explosões masculinas de agressão e erotismo feminino.

O caminhante do caminho do álcool se move na direção oposta. Ele se aproxima do centro a partir de fora, mas tocando a fonte da sua vida, o coração, a alma, ele produz um efeito similar - derramando a substância do coração na "região da serpente". O dragão adormecido desperta, ataca o avistado estranho e o engole. Aqui nós temos uma criatura inarticulada sem sentido (e algumas vezes vômito) com lampejos de desejo e agressão. O fraco apenas geme e baba. Mas a impiedosa serpente faz dos fracos seus escravos. E então nenhuma dica será de ajuda.

Modelos Nacionais do Alcoolismo

Claro que verdadeiros rituais iniciatórios alcoólicos não existem hoje. Apenas ocasionalmente em um impulso revolucionário desesperado individual homens grandes tentam restaurar o mistério de sua dimensão mágica. Assim é Evgeny Golovin, "Admiral" [Almirante], o capitão permanente da iniciação "Bateau Ivre" no centro da Eurásia. Para o selante Rabelais construiu sua "metafísica" da bebedeira o maravilhoso Guy Debord. O alquimista francês Claude d'Izh segue o caminho úmido no mesmo "mar filosófico". Mas estes "desconhecidos superiores" são exceções altamente valiosas. A maioria bebe no modo desesperado profano. Mas aqui também se pode construir uma hierarquia.

Os povos mais próximos do alcoolismo sacro são os autóctones da Sibéria, os índios americanos, os Chukchi, os Esquimós, etc. Aqui estão preservados fragmentos de experiências místicas iniciatórias de intoxicação. Todo mundo entende que "fogo água" é uma viagem barata ao outro lado, um tipo de "transe shamânico". Sobre todos estão, claro, os shamãs propriamente. Mas a "água de fogo" comprou um certo elemento da "democracia" e, portanto, todo mundo é capaz de seguir o shamã. Isso não acrescenta a pureza da experiência, mas o próprio fato das predileções dos arcaicos ao álcool devem ser compreendidas como somente um fator positivo. A nostalgia por uma realidade multidimensional nesse campo de mercado murcho, emasculado, mecânico e cartesiano testemunha saúde espiritual, e não degeneração genética.

A segunda categoria - os russos. Eles são por sua vez mais profanos do que os arcaicos, a cultura cética fez seu trabalho. Mas ainda retêm muitos elementos do sagrado. Primeiramente, os russos quase nunca bebem sozinhos. Entre as pessoas, é considerado um "último grau da decadência". O famoso "em três". Isso demonstra a natureza do mistério da empresa. As pessoas vão nadar, ajudar umas às outras, deixando os limites da separatividade diária do corpo, transbordar em um novo organismo coletivo, plástico e inesperado. As potências da alma se unem. Todos assistem um sonho interativo. Por segundo, conversações bêbadas tanto agora como no passado se movem em temas abstratos - "política", "respeito mútuo (ou desrespeito)", "mulheres", etc. Assim a concentração da consciência é intuitivamente mantida, a consciência balança na beira de cair em uma passividade vegetativa de um corpo caído.

E finalmente, a bebedeira mais inferior é praticada no Ocidente - entre os anglo-saxões, os franceses ou escandinavos dormidos. Aqui está uma versão totalmente feminina. Solidão, a pintura do delírio alcóolico é inteiramente focado no aspecto corporal e sexual. Em uma fina fisiologia do homem ocidental, miseravelmente e um pouco ridículo é não só o coração, mas também o átrio. O dragão ocidental em outros locais do mundo está para confundir facilmente como sanguessuga. Dois três cenários, lampejos de sadomasoquismo, barulho de motor no vazio, colapso no nada, em um típico dormir capitalista sem sonhos. O álcool ajuda a ruborizar o untermensch para limpar a água. Para eles, o tipo não-acoólico é melhor.

Há outro, mais inferior. Mas não no sentido nacional, e sim no sexual: o caminho do vinho para as mulheres. Isso é um rito estritamente masculino. Os russos entendem perfeitamente este momento sacro. Mannerbund ("união masculina"), "fraternidade de bêbados", deve ser ocultada das esposas e das moças, em oposição a elas. A mulher distrai da concentração interior (repele), e ao mesmo tempo previne a experiência de viajar e vagar espontaneamente (limita). Elas são interferências de contemplações imóveis que jogam para um pulo dinâmico.

O alcoolismo feminino é o mais dessacralizado, o tipo ocidental. Especialistas em drogas sabem que beber aí é muitas vezes algo solitário, não conectado propriamente com uma função de "nova comunidade". A fina estrutura da mulher é significantemente diferente da estrutura masculina. Não acidentalmente, acredita-se que os homens têm o olho direito que representa o sol, enquanto o esquerdo representa a lua - e para as mulheres é todo o contrário. Isto é um reflexo de contraposição simétrica. "O caminho dela - como dizia Nietzsche - é a aquisição do abismo de sua própria superficialidade". Em outras palavras, o caminho iniciatório é considerado para mulheres exclusivamente com "sobriedade".

A trajetória inteira é oposta. Os homens precisam cair no sono sem se tornar inconscientes, enquanto as mulheres precisam despertar sem acordar.

"Escute, afogado, escute"

A verdadeira experiência, a experiência com sucesso, experiência iniciatória, assume um-tempo e um caráter irreversível. Isto se aplica inteiramente ao nadar alcóolico. Apesar das tempestades de vento e das tempestades, calmarias e turbilhões, o objetivo é alcançar a margem oposta. Pois é a margem da alma. Ali começa a "nova vida", nasce um "novo homem". Não, não é o fim, é apenas o começo, mas o presente, no outro lado da tolice das quimeras do submundo, que nós - absoluta, equivocada e fundamentalmente - consideramos ser a vida, ser.

Haverão muitas tentativas assim como haverão maus começos, acidentes, barcos quebrados. Infortúnio aos perdedores condenados à repetição. Mas nós não podemos não render a justiça ao tragicamente morto, afogado pelo "grande sonho", vítima do átrio tóxico. Aí está uma vida horrível - nos abismos oceânicos do mercúrio úmido, mas não mais terrível do que no único em que todos nós estamos chafurdando.

Didática é irrelevante aqui. É apenas importante saber de fato o preço das coisas, dispersar a estupidez das algas e conversas tendenciosas de manipuladores culturais.

O álcool pode libertar, pode escravizar, e pode deixar de uma forma desgraçada na qual você agora está.

Você jamais pode contar com certeza. Se for sortudo, então, como disse Golovin:

Na sua frente, como uma fantasia maligna
Deve explodir um cogumelo podre do conhecimento
Aprender a nadar, aprender a pular
Na mãe das pérolas, dos peixes voadores

Para o jornal "Limonka", 1997
"Coisa Russa," Arctogaia, 2001

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