quarta-feira, 24 de julho de 2019

Fenomenologia da Contra-iniciação


Por Claudio Mutti

A "contra-iniciação" e seus agentes.

A melhor maneira de esclarecer o conceito guenoniano de "contra-iniciação" é apoiando-nos nos trechos mais significativos que o próprio René Guénon dedicou a este assunto:

"O termo 'contra-iniciação' -- lemos no Reino da Quantidade -- é o que melhor convém para designar aquilo a que se referem, em conjunto e em diferentes níveis (...) os agentes humanos por cujo intermédio se opera a ação anti-tradicional (...). A 'contra-iniciação' (...) não é uma mera falsificação completamente ilusória, mas algo muito real dentro de sua ordem, como demonstra perfeitamente a ação que exerce efetivamente; pelo menos não é uma falsificação para além do sentido em que imita necessariamente a iniciação a fim de produzir uma sombra invertida dela, apesar de que sua verdadeira intenção não é imitá-la, mas opor-se a ela. Por outro lado, uma tal pretensão é forçosamente vã, já que o âmbito metafísico e espiritual lhe está vedado, precisamente por se encontrar para além de todas as oposições; pode apenas limitar-se a ignorá-lo ou então a negá-lo, e em nenhum caso pode ir para além do "mundo intermediário", quer dizer, do âmbito psíquico, que é por todos os conceitos o campo de influência privilegiado de "Satã" na ordem humana e inclusive no cósmico; mas não por isso desaparece a intenção nem o compromisso que implica seguir a trajetória inversa da iniciação. (...) Na medida em que ela não pode conduzir os seres humanos até os estados "supra-humanos", como a iniciação [o pode], nem limitar-se ao mero âmbito do humano, a "contra-iniciação" os arrasta infalivelmente em direção ao "infra-humano", sendo aqui precisamente onde se localiza o que lhe resta de poder efetivo."[1]

Em relação a este assunto, revestem-se de uma importância particular as cartas que René Guénon escreveu para Vasile Lovinescu (1905-1984) desde 9 de julho de 1934 até 28 de janeiro de 1940[2], cartas que pode-se recuperar em Bucarest. Não obstante, ainda não foram encontradas as cartas enviadas por Lovinescu para Guénon, de modo que os fatos a que Guénon se refere não são sempre perfeitamente compreensíveis; mas, apesar disso, este epistolário guenoniano se torna muito valioso, pois em certa medida nos ilustra a modalidade operativa das forças contra-iniciáticas e nos introduz em situações históricas que parecem demonstrar as seguintes declarações em Reino da Quantidade: "Pode-se salientar que a 'contra-iniciação' se dedica a introduzir seus agentes nas organizações 'pseudo-iniciáticas' às quais dessa forma 'inspiram', atrás de seus membros ordinários e, inclusive, com bastante frequência, de seus chefes aparentes, (...) das organizações 'pseudo-iniciáticas' é sem dúvida alguma o mais chamado a reter a atenção da 'contra-iniciação', convertendo-se em objeto idôneo de seus esforços, pelo próprio fato de que a obra que se propõe seja sobretudo anti-tradicional."[3]

Na mencionada correspondência com Lovinescu estão explicitamente identificados como agentes da contra-iniciação algumas personagens que desempenharam diferentes papéis sobre a cena histórica do século XX.

Em uma carta datada de 24 de fevereiro de 1936, por exemplo, são citados alguns como o Aga Khan III (1877-1957), que no ano seguinte se tornou presidente da Assembleia Geral da Sociedade das Nações; Henry Deterding (1866-1939), o 'Napoleão do petróleo', presidente da Royal Dutch - Shell Oil Company, o que lhe valeu o título de Sir por ter contribuído com a vitória da Entente graças ao fornecimento de combustível; David Lloyd George (1863-1945), patrocinador da intervenção britânica na Primeira Guerra Mundial e responsável (com Wilson, Clemenceau e Nitti) do ordenamento do mundo pós-guerra; também Sir Phillip Sasson (1888-1939), outro político britânico e membro de uma família judia notável, cuja estirpe Sasson havia se unido a um ramo dos Rothschild; o primeiro ministro grego Eleftherios Venizelos (1864-1936), que morreu em Paris no mesmo ano de 1936; o primeiro ministro francês Georges Benjamin Clemenceau (1841-1929), inimigo feroz da Alemanha, que foi um dos artífices do Tratado de Versalhes; Cornélio Herz (1845-1898), empresário franco-americano de origem judia e protagonista do escândalo do Panamá; Edouard Herriot (1872-1957), líder do Partido Radical Francês, três vezes presidente do conselho na Terceira República, candidato ao Prêmio Nobel da Paz em 1929; o Príncipe Alberto I de Mônaco (1848-1922), e do qual Guénon ressalta sua conexão com Basil Zaharoff (1849-1936).

E é justamente Basil Zaharoff, melhor dizendo, Sir Basil Zaharoff, o expoente da contra-iniciação que com maior frequência é citado, e por muito tempo, na mencionada correspondência de vários anos mantida entre Guénon e Lovinescu.


1913: O fracasso da reunião de Guénon com Zaharoff

No capítulo do Teosofismo, intitulado "A questão dos Mahatmas" -- onde os Mahatmas são os presentes "Mestres" com os quais se relaciona a Sociedade Teosófica -- Guénon nos conta um episódio de 1913 que o envolveu pessoalmente, quando foi lhe proposto pôr-se em contato com um destes "Mestres" por conta de assunto que pouco tinha a ver com o Teosofismo: "como quisera que isso não nos comprometia, aceitamos com gosto, ainda que sem criar ilusões a respeito dos resultados. No dia fixado para o encontro, que não se realizaria 'astralmente', apenas chegou um membro influente da Sociedade Teosófica, procedente de Londres, onde se encontraria o 'Mestre', e alegou que este não pôde acompanhá-lo em viagem, e ofereceu um pretexto qualquer para desculpar seu descaso. Desde então não se tratou mais disso, apenas sabemos que a correspondência dirigida ao 'Mestre' era interceptada por Madame Besant. Certamente, isso não prova que o 'Mestre não existisse, assim porque nos cuidaremos muito bem de deduzir a mínima conclusão deste fato."[4]

Em sua biografia sobre René Guénon, Paul Chacornac (1884-1964) recorda deste episódio e escreve o seguinte: 'Os diversos protagonistas desta história desapareceram e não existe, pois, nenhum inconveniente em revelar que o assunto em questão estava ligado à constituição da Albânia como Estado independente e a candidatura do Príncipe de Wied ao trono do novo Estado, candidatura a qual se tratava de tornar favoráveis as organizações sufistas no momento muito poderosas no país."[5]. Essa anedota -- observa Chacornac -- mostra que nessa época havia pessoas que consideravam que Guénon tinha possibilidades de contato com "ambientes geralmente fechados aos ocidentais e quiçá suficiente autoridade para que uma opinião que viesse dele tivesse oportunidades de ser tomada a sério."[6]

Posteriormente, uma luz é lançada sobre este momento graças a Jean Reyor, alias Marcel Clavelle (1905-1988), em um manuscrito privado de 1963 [7], o qual mais tarde Marie-France James intitulou de Documento Confidencial Inédito [8]: "O famoso 'Mestre R.' -- escreve Reyor -- que os teosofistas consideram como a reencarnação do Conde de Saint-Germain e que deveria se encontrar com Guénon a propósito da candidatura do príncipe de Wied para o trono da Albânia, não era outro que sir Basil Zaharoff, o riquíssimo 'fabricante de armas' e agente importante do 'Intelligence Service', amigo íntimo da rainha Maria da Romênia, tia do príncipe de Wied. O 'membro' influente da Sociedade Teosófica ao qual se alude na mesma passagem era Charles Blech, no momento presidente da Seção francesa da tal Sociedade. Alguns anos mais tarde se ofereceria a Guénon uma soma, muito atraente para a época, se ele consentia em não publicar seu livro sobre o Teosofismo."[9]

Que Basil Zaharoff fosse presenteado pelos teósofos como uma reencarnação do Conde de Saint-Germain afirma implicitamente o próprio Guénon: "Acabo de olhar um retrato de Bacon (...) -- escreve a Lovinescu com data de 25 de novembro de 1935 -- que os teosofistas publicaram intencionalmente, em relação precisamente com a L.C.C. (Liberal Catholic Church); parece, muito curiosamente, com a de sir B.Z.! -- Há certamente por baixo de tudo isso algumas manobras bem tenebrosas, e você não se engana ao considerar que essa atenção posta sobre Romênia tenha algo de inquietante..."[10]


Basil Zaharoff

Basil Zaharoff nasceu em 6 de outubro de 1849 em Mugla, entre as montanhas de Anatólia, proveniente de uma família que levava o sobrenome oficial de Zacharios ou Zacarias, e lhe puseram o nome de Basileios (Basílio). De acordo com algum de seus biógrafos, tratar-se-ia de "sobrenomes grecizados, cuja forma original teria sido Sahar ou talvez Zohar: seriam nomes hebraicos autênticos, sobretudo porque o nome de Sahar é bastante comum como sobrenome hebreu e, se a família emigrada para a Rússia começou a se chamar Zaharoff, isso equivaleria a 'Sahar' mais 'off', desinência russa que corresponde, certamente, a uma nova necessidade." [11]. A carreira de Basílio Zacarias começou em 14 de outubro de 1877, quando induziu ao governo turco a compra de uma grande quantidade de armas da companhia inglesa Nordenfeltt, graças a suas relações com um ministro competente "o qual tinha conhecido em certos círculos e em casas de jogo"[12], disse pudicamente seu biógrafo inglês Robert Neumann. Em seguida, Zaharoff conseguiu vender armas para todos os Estados em conflito: desde a Rússia e Japão até a Argentina, Chile, Bolívia e Paraguai.

Disso Ezra Pound se inspirou para o Canto XXXVIII, no qual Zaharoff aparece sob o pseudônimo Metevsky: "disse ele: os outros meninos conseguiram mais munições (...) -- Não comprem até receber as nossas -- E cruzou a fronteira -- e disse aos oponentes -- Aqueles têm mais munições. Não comprem até receber as nossas --. E Ackers (Vickers) tinha realizado muitas ganâncias e importado ouro para a Inglaterra -- Aumentando assim as importações de ouro"[13].

"Durante a guerra dos Bálcãs -- escreveu em 1912 para o diário francês 'Crapouillot' -- Zaharoff armou os dois lados. Apoiou a Grécia contra a Turquia, a Turquia contra a Sérvia e, um ano mais tarde, a Sérvia contra a Áustria."[14]

Em 1913, na época da reunião frustrada com Guénon, a estrela de Zaharoff estava no seu apogeu. Na França, o comerciante de canhões tinha conseguido o controle da Union Parisienne des Banques, historicamente associada com a indústria pesada, e tinha tomado posse do periódico "El Excelsior". Nesse mesmo ano foi premiado com a Légion d'Honneur por méritos filantrópicos.

No Canto XVIII Pound diz: "E Metevsky, 'o conhecido filantropo', - Ou, 'o conhecido financeiro, mais bem conhecido' -- Como dizia a imprensa, 'como filantropo' -- "[15].


O príncipe de Wied e a rainha da Romênia

O príncipe Wilhelm zu Wied, a quem Zaharoff tinha fornecido apoio, foi nomeado rei da Albânia em 28 de novembro de 1913 pelo Conselho de Embaixadores das Grandes Potências (Grã Bretanha, França, Itália, Alemanha, Áustria-Hungria, Rússia). Wilhelm foi um príncipe renano de confissão protestante, cuja candidatura apoiada pela Áustria-Hungria prevaleceu sobre a de Fuad de Egito, respaldado pela Itália. O rei eleito chegou a Durrés em 7 de março de 1914, mas seis meses mais tarde, em 3 de setembro de 1914, teve que voltar para a Alemanha, porque depois de sua negativa para alinhar a Albânia com o lado dos impérios centrais, Viena suspende as ajudas que permitiam o novo Estado balcânico fazer frente aos inimigos internos e externos.

Jean Reyor se equivoca quando escreve que a rainha Maria da Romênia (1875-1938) era tia do príncipe Wilhelm zu Wied, rei da Albânia. A tia deste último, ao contrário, foi a soberana anterior, Isabel da Romênia (1843-1916), que era irmã do pai de Wilhelm (que se chamava Wilhelm, como o filho). Isabel de Wied (conhecida no mundo das letras sob o pseudônimo de Carmen Sylva) tinha subido ao trono de Bucarest em 1881, quando seu marido, o príncipe Carlos de Hohenzollern-Sigmaringen, se tornou rei da Romênia com o nome de Carlos I. Por outro lado, em 1913 Maria (Maria da Saxônia-Coburgo-Gotha) não era, contudo, rainha da Romênia; ela se tornará em outubro de 1914, ao casar-se com Fernando I (1865-1927) e se manterá no cargo até 20 de julho de 1927. Posteriormente aderiu à Fe Baha'i, na qual afirmou ter descoberto o "verdadeiro espírito de Cristo, tantas vezes negado e incompreendido"[16].


Zaharoff em Bucarest em 1922

Com a rainha Maria, Zaharoff certamente teve algo que fazer em fins de 1922, quando chegou a Bucarest para conceder um empréstimo ao Estado romano. "Para ele -- escreve o biógrafo inglês mencionado -- só havia três milhões de libras esterlinas, para a outra parte, pelo contrário, eram dois bilhões de lei (...) Contemporaneamente, a companhia Vickers [A gigante indústria de armamentos controlada por Zaharoff] participa em Rescita, a maior empresa da indústria pesada na Romênia."[17].

A rainha Maria, cuja filha maior, outra Elisabeth (1894-1956), há um ano já era esposa de George II da Grécia (1890-1947), pediu a Zaharoff que interviesse a favor da família real grega, porque temia que o novo soberano também tivesse que seguir a via do exílio, como seu pai Constantino I (1868-1923).

Se alguém tinha voz na Grécia, este era Zaharoff, quem, segundo o 'Times', tinha gasto pelo menos 50 milhões de libras esterlinas para envolver a Grécia na guerra do lado da Tríplice Entente. Como Constantino I da Grécia (1868-1923) era cunhado de Kaiser, a tarefa não era fácil; mas Zaharoff tinha fundado em Atenas uma agência de notícias que, difundindo informações favoráveis à Tríplice Entente, contribuiu para a derrubada do soberano; em seguida se produziu o retorno de Eleftherios Venizelos (1864-1936) e a entrada da Grécia no conflito. Assim foi como Zaharoff mereceu ser enobrecido por Sua Majestade Britânica e se tornou o Sir Zaharoff.

Um papel similar ao desempenhado por Zaharoff em Atenas exerceu a rainha Maria em Bucarest: a Romênia, que até 1916 tinha fornecido petróleo para a Áustria e a Alemanha, entrou em guerra ao lado da Entente por decisão da nova soberana mais que pela vontade de Fernando, que, como escreveu A.L. Easterman, "é um homem tranquilo, pacífico e com um caráter significativo... não é ele, mas Maria quem governa Romênia"[18].


Bô Yin Râ

Guénon retoma o assunto de sua reunião frustrada com Zaharoff na correspondência com Vasile Lovinescu.

Na primeira metade dos anos trinta, este último escrevia em várias revistas romenas, manifestando interesse pelas tradições orientais e por algumas figuras do esoterismo. Em particular, chamou-lhe a atenção o novelista de Praga, Gustav Meyrink (1868-1932), assim como o escritor ocultista alemão Bo Yin Ra, alias Joseph Anton Schneiderfranken (1876-1943), presente enviado da denominada "Grande Loja Branca" (assim era chamada a central do teosofismo) e fundador de uma organização denominada p "Grande Oriente de Patmos".

Lovinescu chega a conhecer em 1932 o livro de René Guénon: Le Roi du Monde, traduz ao romeno e pede ao autor autorização para publicá-lo em vários capítulos em uma revista que fundaria em breve.

Em 16 de dezembro de 1934 Guénon lhe responde positivamente; não obstante, devido ao fato de que Lovinescu também projetava traduzir Bo Yin Ra, Guénon lhe pressiona para "tomar todas as precauções possíveis para que ninguém pudesse supor que ambas as coisas são solidárias seja lá em que sentido fosse". E também escreve: "Agora devo dizer que o que eu penso de Bo Yin Ra não se baseia principalmente no conteúdo de seus livros, mas conheço a organização a qual ele esteve ligado, e que, ainda tendo realmente sua sede em alguma parte da Ásia Central, é de um nível iniciático muito pouco elevado".

Em 29 de setembro de 1935, Guénon acrescenta: "Enquanto aquilo de que tinha falado de BYR, se trata efetivamente de uma organização iniciática degenerada ou desviada, sobretudo pelo predomínio de um certo lado 'mágico', mas, em caso similar, é muito raro que elementos pertencentes à 'contra-iniciação' não se aproveitem dele [esse lado mágico] para se infiltrar e exercer sua influência."

Por último, inteiramo-nos de que Bo Yin Ra esteve presente na reunião na qual também deveria ter assistido Zaharoff: "Refletindo sobre o que me foi escrito com respeito ao 'Mestre dos Bálcãs' --, escreve Guénon a Lovinescu em 11 de outubro de 1935 -- me parece cada vez mais provável que o personagem que queriam me apresentar em 1913 já era sir B.Z. Não sei já se lhe disse que naquela circunstância se tratava da constituição da Albânia como Estado independente, e que da possível intervenção, a respeito, de algumas organizações islâmicas que existiam nesse país. Agora, há outra coisa que também é muito curiosa: na data em que finalmente o personagem se fez presente era na casa de um dos membros da organização oriental da qual lhe falei com respeito a BYR; e, além disso ele (que então não era conhecido ainda por este nome) se encontrava presente neste dia! Até creio, inclusive, que esta é a única ocasião em que me encontrei com ele, a menos que o tenha encontrado outra vez na mesma época, mas não estou muito seguro disso, não tendo então qualquer razão para dedicar-lhe uma atenção particular...".


Zaharoff, o 'Meste R.', o Conde de Saint Germain

Guénon também identifica Zaharoff com o 'Mestre dos Bálcãs', sobre o qual Lovinescu tinha feito menção. Por sua vez, Jean Reyor o identifica com o "famoso 'Mestre R.', o qual os teosofistas tinham geralmente considerado como a reencarnação do Conde de Saint-Germain.

O "Mestre R." é, de fato, o 'Mestre Rákóczi", já que frequentemente os teosofistas sustentaram que o Conde de Saint-Germain pertencia a esta família da aristocracia húngara. Alguns deles identificaram-no com o príncipe Francisco II Rákóczi (1676-1735), que reinou na Transilvânia desde 1703 a 1711; outras vezes com seu filho maior, Leopoldo George (1696-1700); outros também com seu terceiro filho Joseph, marquês de São Marco (1700-1738). Annie Besant (1847-1933), que afirmou ter se encontrado com o Conde de Saint-Germain em 1896, em um de seus livros mencionou duas "encarnações": Francisco II Rákóczi e Janos Hunyadi (1406-1456).

É interessante ressaltar que essas diferentes teses foram apresentadas e discutidas em um estudo de A.J. Hamerster, publicado em partes no periódico "The Theosophist", entre 1934 e 1935, quer dizer, nos mesmos anos em que Guénon iniciava a correspondência com Lovinescu [19].

Agora, em um par de cartas de Guénon, conclui-se que Lovinescu lhe tinha falado do Conde de Saint-Germain, pondo-o em relação com Lord Rothermere, com a rainha Isabel da Romênia e com Sir Basil Zaharoff.

"Quanto às histórias do conde de Saint-Germain (...) -- escreve Guénon em 9 de novembro de 1935 -- essa identificação com Lord Rothermere era para mim completamente inesperada!"

Lord Rothermere é verossimilmente Harold Harmsworth, primeiro visconde Rothermere (1868-1940), o proprietário da Associated Newspapers Ltd., conhecido especialmente pelo desenvolvimento que ele e seu irmão Alfred deram ao Daily Mail e ao Daily Mirror.

"Pelo que se refere à rainha Elisabeth -- continua Guénon na mesma carta -- já tinha ouvido falar em outra ocasião de suas relações com coisas singulares, ainda que não tenha conservado recordações muito precisas sobre isso; já que esta história data de antes da guerra, poderia muito bem ter relação com aquilo que aludi no Teosofismo... Em todo caso, parece que há um ou vários personagens que desempenham, em certas circunstâncias, o papel de Conde de Saint-Germain; o assunto seria saber com que direito e por conta de quem...".

Em 25 de novembro, Guénon volta para o assunto e escreve: "Sua história com respeito ao conde de S-G se torna ainda mais curiosa do que eu pensava, com base no que me disse outra vez, pois confirma coisas que suspeitava há muito tempo. Não parece duvidoso que sir B.Z. seja um representante importante de um dos ramos da 'contra-iniciação'!; alguns até mesmo pensam que seria um de seus chefes; mas talvez isso seja falar demais, porque não é provável que os chefes verdadeiros desempenhem um papel que os ponha de tal modo em evidência... Perguntei-me se na verdade não era dele que se tratava na história à qual fiz alusão no Teosofismo e que, de fato, tinha relação com a constituição da Albânia como Estado independente. Teria sido também ele que tinha recebido através da rainha Elisabeth da Romênia, aparentemente até a mesma época, ou antes se tratava se outro personagem? Em todo caso, se você está seguro do que aconteceu em 1927, suas relações com A.B. já não podem pôr qualquer dúvida".

As iniciais A.B. se referem a Annie Besant. Que coisa tinha que tratar a presidente da Sociedade Teosófica com Zaharoff veremos mais adiante.


O séquito teosofista da rainha Isabel

Primeiramente, será oportuno tratar de compreender o que significa, para Guénon, ao falar sobre as relações da rainha Elisabeth, as 'coisas singulares' (ses rapports avec des choses singulières).

Sem dúvida, era uma coisa bastante notável que a rainha se declarasse simpatizante dos social-democratas e fosse favorável à forma republicana de governo: "a única racional", escreveu a soberana em seu diário [20]. Além disso, a rainha Isabel era "vidente" e afirmava receber mensagens angélicas (tinha tido íntimo contato com o 'espírito' de um não muito especificado imperador Friedrich).

Elisabeth teve como dama de honra a poetisa Elena Vacarescu (1867-1947), que, tornada colaboradora do 'Movimento Cósmico' fundado pelo cabalista e ocultista Max Theon (1848-1927), em 1916 apoiou os esforços realizados pela rainha Maria para alienar a Romênia em direção à Entente; em 1920 Vacarescu consegue uma função de certa importância na Sociedade das Nações.

Outra famosa escritora patrocinada por Elisabeth foi Fanny Seculici, alias Bucara Dumbrava (1868-1926), fundadora da loja teosofista da Romênia e tradutora de um livro de Jiddu Krishnamurti (1895-1986), e viajou à Índia para participar em um congresso da Sociedade Teosófica.

Fanny Seculici é citada por Guénon em sua carta a Lovinescu de 25 de junho de 1936, quando ele volta a mencionar, entre outras coisas, o Conde de Saint-Germain. "Por outro lado, recebi uma carta de alguém que residiu bastante tempo na Romênia e que esteve em relação com os meios teosóficos -- escreve Guénon --. Ao fazer a relação do que me conta com o que eu já sabia por você, parece que, quando da permanência de B.Z. e da senhora Besant na Transilvânia, da que você me tem falado, certa senhora Lazar, de Turda, desempenhou determinado papel; você conhece esta pessoa ou ouviu falar dela?".

É muito provável que Lovinescu tinha ouvido falar de Elena Lazar, porque esta tinha desempenhado atividades teosofistas já no período austro-húngaro na Transilvânia e mais tarde, em dezembro de 1925, participou no congresso teosofista de Adyar na Índia.

"Há também -- continua a carta de Guénon -- uma história extraordinária de uma senhorita Lia Braunstein, originária da Alemanha (possivelmente de Munique), e que se encontrava em Bucarest na época da guerra; pretendia travar contato com os 'Mestres' e especialmente com o conde de S-G; finalmente, foi tomada por um ataque de loucura furiosa em Londres, onde tinha ido para dar um concerto (era música), e foi internada e um asilo de loucos. Também é questão de uma senhorita Seculici, que foi presidente do ramo de Bucarest, e que morreu em Port-Said ao voltar de um congresso em Adyar; a história dessa morte está mesclada com algo relacionado com meu livro sobre Teosofismo, mas de uma maneira que não chego a desenvolver de maneira exata."

Na seguinte carta (é 28 de agosto de 1936) se deduz que no mesmo ano do Congresso de Adyar (e não em 1927) Zaharoff e Annie Besant tinham viajado para a Transilvânia. "Aquilo que eu lhe falei a respeito da senhora Lazar -- escreve -- aconteceu em 1925, conforme novas informações; pois parece que corresponde bem ao assunto do castelo de Hunvard (château de Huniade)".

Aquilo que Guénon chama de château de Huniade é o castelo de Hunvad (hoje Hunedoara), uma região transilvana de onde a casa dos Hunyadi tomou seu nome, casa a que pertenceram Janos Hunyadi e Matthias Corvinus (1440-1490). Aqui, segundo a reconstrução de Pierre Feydel (que transcreve incorretamente o nome do castelo), "Zaharoff (...) procedeu às 'iniciações'"[21].

Em um artigo da série intitulada La Dacie Hyperboréene, publicado em 1937 em "Études Traditionnelles" sob o pseudônimo Géticus, Vasile Lovinescu escreve a propósito sobre Janos Hunyadi ("Jean Corvin de Huniade"): "Ele passa por ter sido não apenas um rosacruciano, mas um Rosacruz"[22]. E acrescenta em uma nota ao pé da página: "Os teosofistas o tornam no Conde de Saint-Germain, o que é fastidioso. Mas não é possível que, logo depois de ter entendido certas coisas, o tenham interpretado a sua maneira fantasiosa? A verdade é que talvez os três personagens, Hunyadi, Rákóczi e Saint-Germain, foram enviados pelo mesmo centro"[23].


Um misterioso projeto de Zaharoff em Bucarest

Essa nota não deve fazer com que se pense que a relação de Geticus-Lovinescu com os teosofistas se tenha esgotado em disputas de ordem teórica. A partir das cartas de Guénon fica evidente que Lovinescu estava muito preocupado pelo fato de que elementos da Sociedade Teosófica queriam se envolver em uma iniciativa inspirada por Sr Basil Zaharoff e cooptá-lo para um misterioso grupo em via de constituição. Lovinescu, cabe lembrar, foi assessor legal da Siderúrgica Rescitza, a companhia romena que foi penetrada pela empresa Vickers, esta última controlada pelo próprio Zaharoff.

Em 27 de janeiro de 1936 Guénon escreve para seu correspondente romeno: "Vejo que o assunto B.Z. parece ainda mais sério do que pensava até agora; você por acaso acredita que o grupo projetado encontre os elementos necessários para sua constituição? Isso seria realmente perigoso; por outro lado, pergunto-me se você deve romper totalmente com isso desde agora mesmo, ou se não seria mais vantajoso que pudesse obter ainda outras informações..."

Em 24 de fevereiro Guénon retoma o argumento: "Agora deve-se acrescentar que há Estados ocidentais que estão manejados mais diretamente que outros por organizações pertencentes à contra-iniciação; e isso nos conduz mais precisamente à sua história de B.Z. Compreendo que essa lhe inquiete muito, conforme me disse nessa ocasião, pois há evidentemente algo anormal nessa maneira de buscar e adiantar coisas; como certamente você não fez nada para provocá-lo, a razão disso não aparece claramente; mas quem sabe se suas investigações sobre Dacia não terão algo que ver nisso? O que me parece que devemos temer acima de tudo, nessas circunstâncias, é que eles tentem espioná-lo e segui-lo em todos os lugares que vá; acredito que fará bem em dar atenção a isso; não observou até agora nada a respeito?".

As personalidades chamadas a ser parte desse grupo figuram em uma lista a qual Lovinescu chegou a ter em suas mãos; seus nomes, não obstante, ou são desconhecidos tanto para ele quanto para Guénon ou foram deformados com o objetivo de impossibilitar  identificação.

Não obstante, Guénon tenta formular algumas hipóteses: "Não me surpreenderia muito -- escreve em 27 de janeiro -- no que diz respeito a Macdonald[24], devido a suas relações com Annie Besant (tinha a encarregado de um projeto de constituição para a Índia); sei também que Lloyd George tem pessoalmente relações muito estreitas com B.Z.; quanto aos demais, não posso dizer nada."

Em 6 de junho, retorna com a questão: "As notícias que você me fornece dos projetos atuais de B.Z. tampouco são verdadeiramente muito tranquilizantes; seria realmente curioso saber se vão designá-lo para formar parte deste grupo..."

Entre outras coisas, se sabe pela carta de 28 de agosto que Zaharoff tinha anunciado a chegada de um "Grande Instrutor" em coincidência com um melhor especificado "grande acontecimento astronômico".

A pessoa com a qual Zaharoff, nos parece, servia de intermediário para tentar atrair Lovinescu, é indicado por Guénon com a inicial D. Tratava-se de Anton Dumitriu (1905-1992), um professor de matemática que em 1934 se tornou assistente na Politécnica de Bucarest. Mircea Eliade (1907-1986) lhe dedica em seu diário de 1937 um par de páginas implacáveis; entre outras coisas, lemos: "Sabia que era teósofo e se proclamava a última incarnação do conde de Saint-Germain. Mais tarde me inteirei de que era um liberal e se interessava pela filosofia da ciência (...). Depois, em 1946, em Paris, eu soube que tinha vindo também ele, com uma comissão petroleira. Ele era muito rico e tinha perguntado a alguns romenos convertidos em parisienses: "Gastando um milhão de francos por ano, dentro de quantos anos pensam que posso comprar Paris?"[25].


O desaparecimento de Zaharoff

Lovinescu deve ter dado um suspiro de alívio quando se inteirou de que Zaharoff tinha morrido de fato, já que mais de uma vez tinha feito publicar nos periódicos a falsa notícia de sua morte. Em 10 de novembro de 1936, Guénon lhe escreveu: "A respeito de Z., talvez você tenha visto que recentemente correu um rumor de que estava morrendo e até mesmo de que tinha morrido já; por outro lado, esta já não é a primeira vez, e tudo isso fora desmentido em seguida (...)".

Cito novamente o Canto XVIII de Ezra Pound: "E Metevsky morreu e o enterraram, i.e., oficialmente, -- E se sentava no café Yeiner para ver seu enterro -- Em torno de dez anos depois deste incidente -- Era dono de um bom pedaço de Humbers (Vickers)"[26].

E outra vez, em 30 de dezembro: "Talvez saiba você que há dois ou três meses já se tinha anunciado a morte de Z., depois tinha sido desmentida (e não era a primeira vez); mas agora se assegura de que é certo (...)."

Por último, em 16 de março de 1937, Guénon informou a Lovinescu de que alguns desconhecidos tinham tentado abrir a tumba de Zaharoff, "provavelmente para confirmar a identidade do corpo."

Sir Basil Zaharoff tinha morrido na manhã do dia 27 de novembro de 1936 no Hotel de Paris em Monte Carlo. O Hotel de Paris era dele. E o Cassino também. Depois de ter concluído um pacto secreto com o príncipe Alberto I de Mônaco, Zaharoff tinha persuadido a Clemenceau a estipular com Sua Alteza um acordo que tinha logo desembocado no artigo 436 da Parte XV do Tratado de Versalhes. O Principado de Mônaco dessa maneira tinha conseguido uma autonomia total; não obstante, se o cassino de Monte Carlo estivesse em risco de quebra, França se comprometia a salvá-lo com uma contribuição financeira. Quando da morte de Alberto I, Zaharoff tinha se apoderado da Societé des Bains de Mer, que era a que dirigia a sala de jogos no Principado.

Com o desaparecimento de Sir Basil Zaharoff de cena, ele, que além de ser comerciante de canhões, banqueiro, petroleiro, magnata da imprensa, jogador de cassino, filantropo, agente de inteligência britânica e a charlatã reincarnação do Conde de Saint-Germain, tinha desempenhado, segundo René Guénon, um papel de primeiro plano no campo da contra-iniciação.

Notas
Claudio Mutti: Fenomenologia della controiniziazione
http://www.claudiomutti.com/index.php?url=6&imag=1&id_news=251

[1] René Guénon, El reino de la cantidad y los signos de los tiempos. Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona 1997, pp. 172, 214, 231 y 232.
[2] La traducción al castellano de estas cartas se encuentra en la Revista Symbolos: http://symbolos.com/s17lov1.htm
[3] René Guénon, op. cit., p. 213 y 214
[4] René Guénon, El Teosofismo. Historia de una pseudoreligión, Ediciones Obelisco, Barcelona, 1989, p. 58.
[5] Paul Chacornac, La vida simple de René Guénon, Ediciones Obelisco, Barcelona, 1987, p. 69
[6] Paul Chacornac, op. cit., ibídem.
[7] La traducción al castellano de este documento se encuentra en la Revista Symbolos: Algunos recuerdos sobre Rene Guénon y Etudes Traditionnelles, http://symbolos.com/s19ined1.htm
[8] Marie-France James, Ésotérisme et Christianisme autour de René Guénon, Nouvelles Éditions Latines, Paris 1981, p. 307 nota e passim.
[9] Jean Reyor (Marcel Clavelle), Documento confidenziale su René Guénon, Edizioni Al-khâtamu al-dhahabiyy, Al-Qâhira s. d
[10] René Guénon: Cartas a Vasile Lovinescu (4): http://symbolos.com/s17lov4.htm
[11] Robert Neumann, Vita di Sir Basilio Zaharoff, Mondadori 1948, pp. 17-18.
[12] Robert Neumann, Vita di Sir Basilio Zaharoff, cit., p. 27.
[13] Ezra Pound: Cantares completos, Tomo I, Ediciones Cátedra, S. A., Madrid, 1994, p. 699
[14] Shaykh Abdalqadir As-Sufi, Tecnica del colpo di Banca, Le Rocce di Korsan, Genova 2002, p. 53.
[15] Ezra Pound, op. cit., p. 359.
[16] Shoghi Effendi, God Passes By, Bahà'ì Publishing Trust, Wilmette, Illinois, 1944, p. 392.
[17] Robert Neumann, Vita di Sir Basilio Zaharoff, cit., p. 196.
[18] A. L. Easterman, King Carol, Hitler and Lupescu, Victor Gollancz Ltd, London 1942, p. 23.
[19] A. J. Hamerster, The Count de Saint Germain: Who he was, "The Theosophist" (Theosophical Publ. House, Adyar, Madras), ott. 1934, pp. 66-72; nov. 1934, pp. 141-150; dic. 1934, pp. 290-292 e 589; maggio 1935, pp. 120-127; giugno 1935, pp. 240-247.
[20] Eugen Wolbe, Carmen Sylva, Leipzig 1933, p. 137.
[21] Pierre Feydel, Aperçus historiques touchant à la fonction de René Guénon suivis d'une Étude bio-bibliographique, Arché, Milano 2003, p. 86 nota 208.
[22] Geticus, La Dacia iperborea, Edizioni all'insegna del Veltro, Parma 1984, p. 64.
[23] Geticus, La Dacia iperborea, cit., p. 64 nota.
[24] "En la época del ministro Ramsay Macdonald [1866-1937, ndr], Mme. Besant elaboró un proyecto de constitución para la India y lo remitió al gobierno; dicho proyecto, que procedía del mismo espíritu que el de la institución del "Congreso Nacional Hindú", parece no haber tenido secuelas, al menos hasta ahora; pero el hecho reviste un significado muy particular cuando se sabe que los verdaderos hindúes cuentan precisamente a Ramsay Macdonald entre los "enemigos brutales y groseros de la India". (René Guénon, Il teosofismo. Storia di una pseudoreligione, cit., vol. II, p. 315, nota 18)
[25] Mircea Eliade, Memorii (1907-1960), Humanitas, Bucureşti 1991, vol. I, pp. 338-339. Sobre Anton Dumitriu, cfr. Claudio Mutti: Eliade, Vâlsan, Geticus e gli altri. La fortuna di Guénon tra i Romeni, Edizioni all'insegna del Veltro, Parma 1999, pp. 75-88.
[26] Ezra Pound, op. cit., p. 357.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Väinäimöinen: deidade finlandesa que inspirou Tolkien para criar Gandalf e Tom Bombadil

Akseli Gallen-Kallela: The Departure of Väinämöinen

por Natalia Klimczak

J.R.R. Tolkien criou marcantes histórias que inspiraram Peter Jackson a produzir filmes incríveis. Mas foi seu conhecimento em literatura e de lendas antigas que inspiraram o escritor a usar histórias de deuses e heróis para criar figuras icônicas tais como Gandalf, Tom Bombadill e muitos outros personagens. Uma das mais fascinantes de suas inspirações veio na forma de Väinämöinen, o deus finlandês da magia, que esteve presente em algumas lendas interessantes bem antes de Tolkien sonhar sobre seu famoso mundo ficcional.

A um olhar mais atento, os livros de Tolkien se parecem com uma paleta de mitos e lendas combinando histórias de diferentes culturas e períodos temporais. A influência das deidades antigas, criaturas míticas, e até mesmo conceitos do cristianismo, são todos claramente visíveis. Contudo, o impacto dessas histórias foi ainda muito pouco trabalhado pelos especialistas em literatura. Mas foi devido a obras como as de Tolkien que o lendário deus finlandês Väinämöinen ganhou novos contornos e aventuras -- fazendo com que ele se tornasse uma figura popular fora dos países escandinavos.


A Lenda de Väinämöinen

Väinämöinen foi um deus da magia e uma deidade misteriosa que amava poesia. Parece que ele era conhecido não apenas na Finlândia, mas também na Estônia e em outros países da Europa norte-central.

As histórias mais antigas referindo-se a Väinämöinen vêm do início do período medieval, mas nenhuma cópia dessas fábulas anteriores a 1551 sobreviveram. A lenda sobre o deus foi descrita por Mikael Agricola, que incluiu-o na lista dos deuses tavastianos. Logo depois, outros escritores começaram a seguir o exemplo e a tratar de Väinämöinen. Ele se tornou o personagem principal da épica nacional da Finlância chamada Kalevala, que é um dos textos escandinavos mais importantes. Entretanto, Kalevala é diferente dos outros escritos escandinavos famosos porque vem do século XIX e não da era medieval. O livro descreve um único mito de criação. Ele inclui todo o espectro de conceitos e características da mitologia nórdica e do folclore finlandês.

R.W Ekman: Väinämöinen

A história descreve o filho de Kaleva e do irmão de Ilmarinen. Conta que havia apenas Mar e Céu no início do mundo. O Céu teve uma filha, Ilmatar, que decidiu ver como era o Mar. Então, ela nadou nele por 700 anos. Finalmente, ela viu um belo pássaro paradisíaco que estava em busca de um lugar para descansar.

Inside front title page of The "Old" Kalevala, Finnish national epos, collection of old Finnish poems, by Elias Lönnrot.

Ela permitiu que o pássaro sentasse em seu joelho. O amigo empenado deixou seis ovos de ouro e um feito de ferro. A perna de Ilmatar logo ficou quente e ela a moveu, destruindo os ovos. As gemas se tornaram o sol e as claras se tornaram a lua e as estrelas. Mais tarde, Ilmatar teve um filho -- Väinämöinen. Seu pai era o Mar e ele era abençoado com todo conhecimento necessário. Ele nadou para a terra, onde ele começou uma nova vida e praticou mágicas.

Ilmatar by Robert Wilhelm Ekman. 


Tom Bombadil

Embora Tom Bombadil não tenha aparecido nas adaptações em filme de Peter Jackson dos livros de Tolkien, ele era um dos personagens preferidos dos leitores. De acordo com David Elton Gay em J.R.R. Tolkien and the Kalevala: Some Thought on the Finnish Origins of Tom Bombadil and Treebeard:

"Como fora muitas vezes notado, muito do que Tom diz é, na verdade, cantado. Assim como é o canto de Väinämöinen. O canto de Tom tem poder, e o poder de seu canto é claramente similar ao de Väinämöinen. Quando primeiramente encontramos Tom, ele salva Merry e Pippin do Salgueiro do Homem Velho através da ameaça de seu canto: assim como ele diz a Frodo e Sam, "eu cantarei suas raízes para fora. Eu cantarei o vento para cima e soprarei fora folhas e galhos" (LR 1.6, 117). Goldberry mais tarde conta a Frodo que Tom é o mestre de sua terra. E, como as conversas de Tom com os Hobbits deixam claro, seu domínio sobre sua terra, como o de Väinämöinen, é através do conhecimento e da experiência, ao invés da posse de propriedade (ownership). Se, como eu proponho, Tom Bombadil é baseado em parte no Väinämöinen, então o controle de Tom de seu mundo através do conhecimento expresso em canto é esperado: para ter poder sobre algo como a mitologia de Kalevala deve-se conhecer suas origens e ser capaz de cantar a ela cantos e encantamentos apropriados sobre essas origens, e foram suas obras que ajudaram a dar forma à terra. O mesmo é claro a respeito de Tom Bombadil. (...) A opção de Tom dos adjetivos "antigo" e "o mais antigo" para descrever a si mesmo o conecta a Väinämöinen, pois, ao longo do poema de Kalevala, dos antigos rascunhos de Lonrots para a edição da épica em 1849, Väinämöinen é "o firme e antigo Väinämöinen" (vaka vanha Väinämöinen)."

Tom Bombadil

Gandalf das Lendas Nórdicas

No caso de Gandalf, a situação é um pouco mais complicada. De acordo com especialistas na literatura tolkieniana, o autor usou mais de uma inspiração ao criar as características deste personagem ficcional.

Gandalf in the 1978 animated film

Ao criar um dos personagens mais icônicos de seus livros, Gandalf, Tolkien estava inspirado pelo deus nórdico Odin e por Väinämöinen. Embora existam conexões com personagens bíblicos, a influência dos países nórdicos, e do poema épico Kalevala é proeminente no mago.

Algumas fontes também compararam Väinämöinen com as criações tolkienianas como Treebard e os Ents. Além disso, a ideia de um "anel do poder" usado nas histórias da Terra Média também vêm de Kalevala. Estes exemplos providenciam evidência do quão Tolkien esteve fascinado com as lendas antigas sobre deuses e magia.

Odin, the Wanderer (1886) by Georg von Rosen (1843–1923)

As Influências Míticas nos Livros de Tolkien

Além de tudo, os nomes dos famosos anões de The Hobbit, a saber Thorin, Balin, Dwaliin, Bifur, Bofu, Bombur, Ori, Dori, Nori, Gloin, Oin, Kili, Fili, Dain, Nain, Thrain, Thror e Durin todos vêm do poema Edda -- uma coleção bem conhecida de poemas escrita em nórdico antigo.

Os livros de Tolkien são repletos de lendas e mitos de tempos pré-cristãos. Especialistas em escritos cristãos também sugerem que há muitos conceitos católicos presentes, contudo é impossível não notar as analogias entre seus livros e o nórdico antigo e os mitos celtas.



Referências:


Gay, David Elton, “J.R.R. Tolkien and the Kalevala: Some Thoughts on the Finnish Origins of Tom Bombadil and Treebeard" in Tolkien and the Invention of Myth: A Reader, ed. By Jane Chance, 2004


New Medievalisms edited by Javier Martín-Párraga, Juan de Dios Torralbo-Caballero, 2015.
Väinämöinen, available at: 

Väinämöinen, available at: 

sábado, 6 de julho de 2019

Benoist: '[ideologia de gênero] visa converter masculinidade em condição patológica'


Entrevista com Alain De Benoist, por Nicolas Gauthier (Elmanifiesto)

O feminismo de antes lutava para promover os direitos das mulheres. O atual neofeminismo passou a negar as próprias noções de masculinidade e feminidade. Como explicar esta transformação?

Produziu-se em dois tempos. Em um primeiro momento, as feministas de tendência universalista (as que concebem a igualdade como sinônimo de mesmidade) quiseram mostrar que as mulheres são "homens como os demais". Tratava-se, por exemplo, de provar que não há qualquer tarefa reservada por natureza a um ou outro sexo, que pode haver mulheres soldados, mulheres pilotos de avião etc. Por que não? Mas evidentemente, se deixa de haver "tarefas de homens", todas as tarefas se convertem em unissexuais. Ao mesmo tempo, se exigia paridade em todas as áreas, pressupondo que ambos os sexos têm não apenas as mesmas capacidades, mas também os mesmos desejos e aspirações. Este requisito se estendeu gradualmente até o absurdo, embora não abundem mulheres de caminhão de lixo e homens parteiros! Claro, a falta de paridade apenas se mostra chocante quando se exerce em benefício dos homens: que a magistratura esteja feminizada em 66% (mais de 86% entre os jovens de 30 a 34 anos), que o pessoal da Educação Nacional esteja em 68% (82% no ensino primário) não provoca o mínimo protesto. Quando hoje se assiste a um filme policial, é até difícil imaginar que também existam homens na polícia nacional!

As coisas pioraram com a ideologia de gênero, que, negando que o sexo biológico seja um fator determinante na vida sexual, faz dele uma "construção social" e o opõe à multiplicidade de "gêneros". A ideia geral aqui é que ao nascer, todo mundo é mais ou menos transexual. Tu já terás notado a importância do "trans" no discurso LGBTQI+: embora os verdadeiros transexuais são apenas uma minoria, o uso da visão do mundo queer torna possível afirmar que estão todos em todo lugar e vice-versa. Às crianças de quatro ou cinco anos se diz que podem eleger seu "gênero" como melhor lhes parece.

Assim, pois, se nega as noções de masculinidade e feminidade, mas ao mesmo tempo, sob a influência da correção política, se ressuscita constantemente o masculino para pô-lo no pelourinho. Por um lado, se afirma que o biológico não determina absolutamente nada, enquanto que, por outro lado, se afirma que o homem é por natureza um estuprador em potencial e que o patriarcado (a "cultura do estupro") está de alguma maneira inscrito em seus genes. Contesta-se a ideia do "eternamente feminino", mas se essencializa o macho com o argumento de que sempre fora agressivo e "dominante".

Então nos dirigimos para uma desvalorização geral da masculinidade?

Sim, inclusive cabe dizer que se declarou guerra contra o cromossomo Y. Não apenas deve-se perseguir o "sexismo" até suas manifestações mais inócuas, já que haveria continuidade de "assédio" e "feminicídio", mas que se deve fazer todo o possível para conseguir que os homens renunciem a sua hombridade -- ao que agora se chama de "masculinidade tóxica". Ontem as mulheres queriam ser "homens como os demais"; hoje são os homens os que devem aprender a se converter em "mulheres como as demais".

A masculinidade se converte em uma condição patológica. Nova significação orwelliana: o homem é uma mulher (Deus também, sem dúvida: lésbica, inclusive). Portanto, os homens devem se feminizar, deixar de se "comportar como homens", como uma vez se lhes recomendava no passado, dar rédea solta às suas emoções (recomenda-se que chorem e gemam), sufocar o gosto pelo risco e pela aventura, encantar-se pelos produtos de beleza (o que compraz muito o capitalismo e a sociedade dos propulsores de carrinhos de bebê), e sobretudo -- em especial -- nunca considerar as mulheres como um objeto de desejo. E esta é uma nova versão da guerra dos sexos, em que o inimigo é chamado a se redimir, desfazendo-se de sua identidade.

O que as sabichonas (marisabidillas) da escritura inclusiva e as amazonas do girl-power exigem agora são homens que se unam com a "interseccionalidade" das lutas "anticoloniais", que comunguem em uma virtuosa devoção com as "vencedoras" do futebol feminino, que militem pela "ampliação da visibilidade das sexualidades alternativas" e se mobilizem contra a "precariedade menstrual", esperando sem dúvida em converter-se em um generalizado conjunto andrógino em um mundo transformado em gineceu regido por Big Brother, o Estado terapêutico prescritor de condutas. Basta de "cisgêneros"! Um passo aos "não-binários", aos "gêneros fluidos" que conseguiram se extrair dos estereótipos do universo "heterocêntrico"!

Esta é a razão pela qual nossa época não gosta de heróis e prefere as vítimas. Veja como, durante as cerimônias do fim do centenário da Primeira Guerra Mundial, tentou-se "desmilitarizar" o evento, celebrando o "retorno à paz" para não ter que falar de vitória. Como se os poilous[1] quiseram apenas acabar com as guerras, sem se preocupar de quem terminaria vencendo a guerra! Do que não há dúvida é de que as classes trabalhadoras admiram espontaneamente o heroísmo de um coronel Beltrame ou o dos comandos mortos em Malí, Cédric de Pierrepont e Alain Bertoncello. O espírito da época, ao contrário, pede que nos reconhecemos no travesti Bilal Hassani, "representante da França" no Eurovision e titular do "prêmio LGBTI" do ano. Não se trata exatamente da mesma humanidade.

Tu falas da desvalorização do heroísmo. Mas então, como explicar a moda cinematográfica dos "super-heróis"? É uma forma de compensação?

Sem dúvida, mas não é o essencial. Deve-se ter em conta que, na verdade, o super-herói não é nenhum herói exponencial, mas que nele se inclui todo o oposto do herói. O herói é uma figura trágica. É um homem que elegeu ter uma vida gloriosa, mas breve, ao invés de uma vida cômoda e medíocre. O herói é um homem que sabe que um dia ou outro terá que dar sua vida. Não há nada disso em Iron Man, Superman, Spiderman e outras tristes produções de DC ou Marvel. Não são heróis porque são invencíveis, não sente o mínimo medo, não há nada de trágico neles. São super-homens, mas de um ponto de vista da testosterona. Não são, estritamente falando, nada além de "homens incrementados", tal como se imaginam os defensores do "sobre-humanismo". Estamos a mil léguas de Aquiles ou de Siegfried.

[1] Literalmente, "os peludos", como se denomina na França os soldados franceses da Guerra Mundial.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Putin, Lavrov e Xi Jinping convocam fim à DMA



por Matthew Ehret

O espectro da guerra nuclear há muito paira sobre o mundo como uma espada tenebrosa de Dâmocles, oferecendo à humanidade muita causa para desespero diante da natureza ambivalente da ciência enquanto uma fonte de poder criativo que enleva e enobrece por um lado, e atua como o arauto da morte e do caos por outro.

Todavia, seria errado culpar a ciência pela crise cuja humanidade desencadeou com o átomo, quando a realidade é que nós nunca nos libertamos da peste dos sistemas oligárquicos de governo. Retrocedendo aos registros dos impérios Romano, Persa e Babilônico tais sistemas tem sempre almejado manipular as massas na direção de padrões de comportamento de auto-policiamento e conflito constante.

Quer estejamos falando sobre as Cruzadas, as guerras religiosas Européias, as guerras Napoleônicas, a guerra da Criméia, Guerras do Ópio, ou as primeira e segunda guerras mundiais tem sido sempre a mesma receita: Pôr as vítimas para definir seus interesses ao redor de constrangimentos materiais, recursos em diminuição, ou vieses religioso/étnico/linguísticos que previnem cada pessoa de reconhecer seus interesses comuns com seu vizinho e então pô-los a lutar. Clássico dividir e conquistar.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, aquela antiga receita para administrar o caos não funcionava mais quando um novo ingrediente foi introduzido no “grande jogo” geopolítico. Esse ingrediente atômico era tão poderoso que aqueles “mestres do jogo” gerenciando de cima os problemas da terra como deuses Olímpicos separados entenderam que poderiam ser aniquilados tão rápido quanto suas vítimas e que um novo conjunto de regras devia ser criado às pressas.

A Aposta Nuclear do Senhor Russell

Um principal representativo da mente genocida do império Britânico foi o Senhor Bertrand Russell, um membro de sétima geração da elite hereditária conhecida hoje pelo seu celebrado pacifismo e profundo alcance filosófico. É um fato desconfortável que esse modelo exemplar da “lógica” e da paz tenha sido um dos primeiros pensadores registrados clamando pela aniquilação nuclear da União Soviética na esteira da rendição da Alemanha Nazista. Caso a União Soviética não se submetesse a um Governo Mundial Único, argumentou o Senhor Russel no Boletimpara os Cientistas Atômicos de 1946, então deveria simplesmente encarar uma punição nuclear.

É claro que aquela ameaça foi de vida curta, quando o anúncio surpresa da Rússia de haver “decifrado o código atômico” quebrou o monopólio sobre cujo qual os Anglo-Americanos salivavam e 1945 quando observavam o Japão (cuja rendição indireta já havia sido negociada) queimar sob a sombra de um renovado Leviatã Anglo-Americano emergente.

O Senhor Russel, entãodiretor da CIA/MI6 Congresso pela Liberdade Cultural (cujo objetivo era criar uma nova anti-cultura de hedonismo e irracionalismo nas artes durante a Guerra Fria) foi forçado a mudar o tom e a liberar, ao invés, uma nova doutrina que veio a ser conhecida como “Destruição Mútua Assegurada” (DMA). A obsessão de Russel em tentar escravizar toda a física a um estrito determinismo matemático tal qual fora disposto em seu Principia Mathematica (1910) e seu papel principal na promoção da arte abstrata/música atonal pela CIA sob a bandeira da CCF é um insight útil sobre como sociedades são gerenciadas por oligarcas.

Numa entrevista à BBC anos após Russell mudar suas visões sobre um primeiro ataque à Rússia, o aristocrata britânico, agora-convertido em advogado anti-nuclear descreveu sua mudança de opinião assim:
“Q: É verdadeiro ou falso que em anos recentes você defendeu que uma guerra preventiva pudesse ser feita contra o comunismo, contra a Rússia Soviética?”
RUSSELL: É completamente verdadeiro, e eu não me arrependo disso agora. Não era inconsistente com o que eu penso agora... Houve um tempo, logo após a última guerra, quando os americanos tinham um monopólio das armas nucleares e ofereceram para internacionalizar armas nucleares pelo plano Baruch, e eu pensei ser uma proposta extremamente generosa da parte deles, uma que seria muito desejável que o mundo aceitasse; não que eu defendesse uma guerra nuclear, mas eu pensava que uma grande pressão devesse ser posta sobre a Rússia para que aceitassem o plano Baruch, e eu de fato pensei que se eles continuassem a recusá-lo talvez fosse necessário de fato ir à guerra. Naquele tempo as armas nucleares existiam apenas em um lado e, portanto, as chances é que os Russos desistiriam. Eu pensei que eles iriam... .
Q: Suponhamos que eles não desistissem.
RUSSELL: Eu pensei e tinha esperanças que os Russos iriam desistir, mas é claro que você não pode ameaçar a não ser que esteja preparado para ter seu blefe confrontado.”

Um fim para o Mundo do DMA

O novo jogo tornou-se “balanço geopolítico do terror” sob o DMA, e em muitos aspectos o poder que ele oferecia a uma oligarquia era maior que qualquer coisa que uma sociedade pré-atômica tinha para oferecer. Ao mesmo tempo que grandes guerras não eram mais desejáveis (embora fossem sempre um risco nesse jogo psicótico de altas apostas de poker), guerra assimétrica e uma mudança de regime tornaram-se as novas “coisas grandes” pelos próximos setenta anos. Uma população em terror constante de aniquilação tornou-se um solo maduro para a disseminação de uma nova inquisição sob a orientação de um travestido megalomaníaco dirigindo o FBI. Essa inquisição purgou o Ocidente de líderes qualificados que fossem comprometidos para com a paz entre Oriente e Ocidente e incluiu grandes cientistas, artistas, professores e políticos que viram suas carreiras serem destruídos conforme o Estado Profundo tornou-se cada vez mais poderoso e bombas atômicas mais abundantes.

Enquanto muitos celebraram de maneira tola o sucesso do DMA com o colapso da União Soviética e a ascensão de um mundo uni-polar que iria supostamente conduzir a um pacífico “fim da história”, outros reconheceram o grande truque na medida em que a OTAN continuou se expandindo a despeito de sua razão de ser ter desaparecido. Yevgeni Primakov e um círculo de patriotas russos (cujo qual incluía um Vladimir Putin em ascensão) estavam entre aqueles que viram através da fraude. Essa rede trabalhou diligentemente com suas contrapartidas asiáticas para criar uma fundação para sobrevivência que manifestou-se na forma do G20 m 1999 e na Organização para Cooperação de Xangai em 2001.

No início de 2007, as guerras desencadeadas no Oriente Médio após o 9-11 não tinham um fim previsto, e uma intenção muito mais obscura do que muitos poderiam imaginar estava emergindo entre o caos. A construção de um escudo anti-mísseis balísticos liderada pela OTAN se iniciou ao redor do perímetro sul da Rússia por iniciativa de Dick Cheney e foi logo incrementada posteriormente pela circunscrição de um “Pivô-Asiático” da China, sob o mandato de Obama em 2011. Somente os tolos mais ingênuos acreditaram então que o Irã ou a Coréia do Norte eram as verdadeiras razões por trás dessa jogada Hobbesiana preemptiva de poder em favor de um monopólio. O fantasma do Senhor Russell podia ser sentido ao redor do mundo, ameaçando uma guerra nuclear se a soberania nacional não fosse abandonada em favor de um governo mundial gerenciado por uma “ditadura científica”.

A Convocação da Rússia e da China para controlar a Serpente de Fogo

O Presidente Putin junto a Sergei Lavrov e o Presidente Xi Jinping assinalaram um fim a era do DMA com uma importante convocação por uma nova doutrina internacional de segurança baseada sobre um “novo sistema operante”.

Saindo da Cúpula Econômica de São Petersburgo em 6 de Junho, Putin disse “se nós não mantermos essa serpente de fogo sob controle – se permitirmos que ela saia da garrafa, Deus proíba, isso pode levar a um catástrofe global. Todos estão fingindo ser surdos, cegos ou disléxicos. Precisamos reagir a isso de alguma maneira, não é? Claramente é isso.”

As palavras de Putin foram amplificadas por Sergei Lavrov em 11 de Junho ao falar na conferência do Primakov Readings de 2019 em Moscou, que reuniu diplomatas, especialistas e políticos de 30 países no tema do “Retornando à Confrontação: Existem Alternativas?” Lavrov disse:

“É de uma importância capital que a Rússia e os Estados Unidos tranquilizem o resto do mundo e transmitam uma declaração conjunta de alto escalão de que não pode haver vitória numa guerra nuclear e que, portanto, ela é inaceitável e inadmissível. Nós não entendemos porque eles não podem reassegurar essa posição agora. Nossa proposta está sendo considerada pelo lado dos Estados Unidos.”

Desde que se puseram entre o pelotão de fuzilamento Anglo-Americano e as nações da Síria e da Venezuela, em conjunto com uma surpreendente divulgação de um conjunto de novas tecnologias militares em Março de 2018, Putin transformou as “regras do jogo” geopolítico no sentido de que a proposta de Lavrov é agora uma possibilidade real. As novas tecnologias divulgadas pela Rússia em 2018 incluem mísseis supersônicos, drones subaquáticos e outros foguetes nucleares que garantem a capacidade de um ataque retaliatório caso alguém seja estúpido o suficiente em atacar a Rússia primeiro.

O ICR (BRI, da sigla em inglês) e o Novo Sistema Operante

A cúpula econômica de São Petersburgo de 5-6 de Junho testemunhou não apenas 19000 participantes de 145 países assinado $47.8 bilhões em acordos, mas caracterizou-se como um encontro importante entre o chinês Xi Jinping e Putin, que descreveram seu relacionamento como o de melhores amigos e travaram suas nações mais profundamente que nunca no novo panorama operacional da Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR, ou BRI da sigla em inglês), que rapidamente está se estendendo no Ártico.

Esse encontro foi levado ainda a um outro patamar em Bishkek Kyrgyzstan, com a cúpula da Organização para Cooperação de Xangai em 13-14 de Junho,  que integrou ainda mais as nações Eurasianas no ICR. Putin e Xi não apenas se encontraram novamente nessa cúpula, mas agora foram acompanhados pelo indiano recentemente eleito Narendra Modi, cuja participação é vital para a reorganização do sistema mundial. Após a cúpula da OCX, o mundo aguardaria pelo encontro potencial de 28-29 de Junho, na cúpula do G20 em Osaka, Japão, onde o presidente norte-americano Donald Trump indicou seu desejo de encontrar com os três líderes para negociações bilaterais. Muitos espectadores criticaram a ideia de que Trump de fato pudesse desejar um encontro honesto, mas Lavrov demonstrou seu entendimento superior da complexidade estratégica na América argumentando numa entrevista em 6 de Junho, quando ele disse que os fracassos do Presidente Trump em estabelecer relações construtivas com a Rússia devem-se à sabotagem de forças enraizadas dentro do governo: “Certos políticos estado-unidenses, incluindo aqueles que ataram as mãos do Presidente Trump não permitindo que ele cumprisse com suas promessas de campanha de normalizar e melhorar as relações com a Rússia, ainda são incapazes de aceitar esse fato.”

A propósito numa conferência em 12 de Junho junto ao presidente da Polônia, Trump foi pressionado por um repórter a tomar a linha dura contra a Rússia, que aparentemente está “ameaçando a Polônia”. Enquanto fingia concordar com a narrativa Rússia=bully, Trump concluiu sua resposta dizendo “Espero que a Polônia venha a ter um excelente relacionamento com a Rússia. Espero que nós venhamos a ter um excelente relacionamento com a Rússia e, inclusive, com a China e muitos outros países.” Trump tinha anteriormente convocado a Rússia, a China e a América para converterem suas centenas de milhões de dólares gastos em forças armadas em projetos que sejam do interesse comum de todos. Durante sua declaração chave ao Fórum Econômico, Putin desvelou o “elefante na sala” trazendo o tema da quebra do sistema financeiro global: “a degeneração do modelo de universalista de globalização e sua transformação numa paródia, numa caricatura de si próprio, onde as regras internacionais comuns são substituídas pelas leis... de um país.” Putin prosseguiu alertando para uma “fragmentação do espaço econômico global e por uma quebra forçada devido a uma política de egoísmo econômico completamente ilimitada. Mas esse é o caminho para um conflito sem fim, guerras comerciais e talvez não apenas comerciais. Figurativamente esse é o caminho para a terminal luta de todos contra todos.”

O ponto ressaltado foi que em última instância sem um novo sistema econômico, o perigo de injustiça e de aniquilação global pairará sempre sobre a humanidade. Ecoando a filosofia da cooperação ganha-ganha de Xi Jinping, Putin disse que o que é necessário em última instância é “um modelo mais justo e estável de desenvolvimento. Esses acordos deveriam não só ser escritos claramente, mas deveriam ser observados por todos os participantes. Entretanto, eu estou convencido que falar sobre uma ordem econômica como essa continuará sendo um pensamento caprichoso, a não ser que retornemos ao centro da discussão, isto é, noções como as de soberania, como o direito incondicional de cada país na sua estrada desenvolvimentista e, deixe-me acrescentar, responsabilidade pelo desenvolvimento sustentável universal, e não apenas pelos próprios desenvolvimentos.”


BIO: Matthew J.L. Ehret é um jornalista, palestrante e fundador da revista Canadian Patriot Review (O Patriota Canadense). Ele é um autor junto ao The Duran, à Fundação de Cultura Estratégica, Fort Russ e o Orient Review. Seus trabalhos têm sido destacados em Zero Hedge, Executive Intelligence Review, Global Times, Asia Times, L.A. Review of Books, and Sott.net. Matthew também publicou o livro “Chegou o Tempo do Canadá Ingressar na Nova Rota da Seda” e três volumes da História Não-contada do Canadá (disponíveis em untoldhistory.canadianpatriot.org). Ele pode ser contatado em matt.ehret@tutamail.com

sábado, 29 de junho de 2019

Fusaro: 'Tontos de esquerda combatem fascismo inexistente e apoiam o mercado'


Diego Fusaro é um dos intelectuais mais polêmicos da Itália, uma vez que ocupa uma posição ideológica que aglutina posições conservadoras e de esquerda. É marxista e suas referências são Gramsci, Pasolini e Costanzo Preve, ao mesmo tempo que é antiglobalista e soberanista, e isso o levou a sustentar posições com as quais muitos salvinistas não estão em desacordo. Vários livros seus foram editados na Espanha, tanto por editoras ligadas à esquerda, como 'Antonio Gramsci, la pasión de estar en el mundo' (Ed. Siglo XXI) ou 'Todavía Marx' (Ed. El Viejo Topo), ou à direita, como o recém publicado 'El contragolpe' (Ed. Fides). O pensamento de Fusaro é um tanto heterodoxo, que está destinado a receber críticas de um lado e de outro, e em não poucas ocasiões foi tachado de vermelho e de fascista, como também se fez com quem o entrevistou, que acusam de branqueamento. Mas aqui assumimos com gosto este risco, porque as ideias do filósofo na moda na política italiana também merecem ser conhecidas.

PERGUNTA. Acaba de publicar 'La notte del mondo'. Explica-me, por favor, por que estamos em uma noite escura, em que ponto se cruzam Marx e Heidegger.

RESPOSTA. Meu livro 'La notte del mondo. Marx, Heidegger e il tecnocapitalismo' (UTET, 2019) é uma tentativa de raciocinar segundo as categorias de Marx e Heidegger sobre o que o próprio Heidegger, com os versos de Hölderlin, define "A noite do mundo". A noite do mundo é uma época na qual a escuridão está tão presente que já não vemos mais sequer a escuridão em si e, portanto, não somos conscientes desta escuridão. Heidegger o expressa dizendo que "é a noite da fuga dos deuses", na qual já nem sequer somos conscientes da pobreza e da miséria nas quais nos encontramos. Esta é uma situação de máxima emergência. Por sua vez, Marx nos 'Grundrisse' dizia que "o mundo moderno deixa insatisfeito, ou, se satisfaz em algo, é de modo trivial". É outra maneira de dizer que estamos efetivamente na noite do mundo, onde sequer vemos o enorme problema em que nos encontramos. No livro eu emprego as categorias de dois autores muito diferentes, como Marx e Heidegger, para tratar de expressar quais são as contradições de nosso presente em que todo o mundo calcula e ninguém pensa. No qual a razão econômica e técnica, técnico-científica, se impôs como a única razão válida e pretende substituir todas as demais.

P. Insiste que o eixo político não deve ser esquerda e direita, mas os de cima e os de baixo. E que ideologicamente devemos ser conservadores nos valores (enraizamento, lealdade, família, eticidade, pátria) e de esquerda [na economia] (emancipação, socialismo democrático, dignidade do trabalho). Essa é a forma de ser marxista hoje?

R. Sim, creio que a geografia da política atual mudou profundamente. Hoje há uma espécie de totalitarismo liberal que nos permite ser liberais de direita, liberais de esquerda, liberais de centro, sempre e quando formos liberais, sempre, portanto, esquerda e direita se convertem em duas formas diferentes de ser liberais ou, precisamente, em liberalismo político e econômico, em prática libertária nos costumes e, claro, em atlantista na esfera geopolítica. Creio que hoje devemos repensar uma recategorização da realidade política de acordo com a dicotomia alto/baixo ou a categoria elite/povo, que às vezes se utiliza como sinônimo. Isso implica que se a elite, o senhor globalista, é precisamente cosmopolita, a favor da abertura ilimitada da livre circulação, o servo, pelo contrário, deve lutar pela soberania nacional-popular como base da democracia dos direitos sociais. Hoje é necessário restabelecer o vínculo entre o Estado nacional e a revolução socialista. Este é o ponto fundamental.

P. Qual vai ser o futuro da UE? Romper-se-á? Quais opções se abririam? Acredita ser possível uma aliança dos países do norte, como Alemanha, Países Baixos, Suécia e outros e outra [aliança] dos países do sul? Como recompor-se-á a ordem internacional se a UE se tornar ainda mais fraca ou se vier a se romper?

R. Devemos ser muito claros ao dar uma definição da União Europeia. A União Europeia é a união das classes dominantes europeias contra as classes trabalhadoras e os povos da Europa. É a vitória pós-1989 de um capitalismo que se realiza completamente, dissolvendo os últimos bastiões de resistência: os Estados soberanos nacionais com o primado do político e da democracia sobre o automatismo total do tecnocapitalismo. Esta é a União Europeia. Um processo de globalização, de despolitização da economia e da imposição do interesse do capital cosmopolita contra os interesses das comunidades nacionais. Por isso, a luta contra o capitalismo em nosso continente hoje não pode deixar de ser uma luta contra a União Europeia. A tragédia é que a esquerda abandonou esta luta, na medida em que passou do internacionalismo proletário ao cosmopolitismo liberal e, portanto, deixa a luta contra a União Europeia, contra a globalização capitalista, para as forças que, muito frequentemente, não querem a emancipação humana nem a solidariedade dos trabalhadores, tratam simplesmente de reagir, olhando para um passado que já não existe.

P. Como deveriam atuar os países da Europa diante dos EUA e da China?

R. Creio que a Europa pode se salvar apenas se recuperar, por um lado, suas próprias identidades culturais e sua pluralidade estrutural e, por outro lado, se se libertar da ditadura chamada União Europeia, que é a ditadura do capital, dos mercados contra os trabalhadores e os povos, e se se libertar do jugo mortal do atlantismo de Washington. Temos que apontar para um eixo eurasiático que vá desde a Rússia de Putin até a China em função antiatlantista. Devemos nos libertar disso e mudar nosso ponto de vista.

P. Insiste que deve-se combater o globalismo, mas tampouco deve-se apoiar o nacionalismo. Qual é a opção?

R. Creio que hoje devemos ir mais além do globalismo e do nacionalismo. Afinal de contas, o globalismo não é mais que o nacionalismo estadunidense que se tornou mundo e, portanto, é uma forma de nacionalismo levado a seu máximo desenvolvimento. Creio que é necessário fazer valer, contra estes dois opostos, um modelo de internacionalismo entre Estados soberanos solidários, baseados na democracia, no socialismo e nos direitos das classes mais frágeis e, em consequências, em uma espécie de soberania internacionalista, democrática e socialista, distanciada tanto do cosmopolitismo que destrói as nações, quanto do nacionalismo que é um egoísmo pensado a nível da própria nação individual.

P. O Estado é o primado do político sobre o econômico. Por isso o mundo global quer acabar com os Estados?

R. Os Estados nacionais soberanos, na modernidade, não apenas foram os lugares do imperialismo, do nacionalismo e das guerras, como repete a ordem do discurso dominante, que quer destruir os Estados para impor o primado do capital globalista, onde os Estados se converteriam unicamente nos mordomos do capital. Esta é a visão liberal do Estado. Na verdade, os Estados nacionais soberanos também foram lugares das democracias e das conquistas salariais das classes fracas. E por essa razão que hoje o capital quer destruí-los, certamente não para evitar as guerras ou o imperialismo que, de fato, prosperam mais que nunca no marco pós-nacional. Hoje o Estado pode representar o único vetor de uma revolução opositora contra o capital mundialista, tal como demonstram perfeitamente os acontecimentos dos países bolivarianos, como Bolívia, Venezuela ou Equador que, apesar de seus limites estruturais, estão criando formas de populismo soberanista, socialista, patriótico, anti-globalista e identitário [identitário: de identidade étnica].

P. Por ideias como estas você foi chamado de fascista. Suas posturas políticas assustam mais a esquerda que a direita. Por quê? Nessa demonização, que papel desempenham os meios de comunicação e a Academia?

R. Claro, hoje em dia a categoria de 'fascismo' é usada de maneira completamente a-histórica e descontextualizada, para demonizar simplesmente ao interlocutor. Hoje quem reafirma a necessidade de controlar politicamente a economia e, portanto, reintroduzir a soberania contra a abertura cosmopolita, é vilipendiado e tachado imediatamente de 'fascista', 'vermelho-pardo' e 'estalinista'. A categoria de fascismo está, pois, completamente a-historizada, apenas serve para ocultar o verdadeiro rosto do que Pasolini já havia identificado como o verdadeiro fascismo de hoje: o da sociedade de mercado, o totalitarismo dos mercados e das bolsas de valores especulativas. Este é o verdadeiro rosto do poder hoje em dia, e muitos tontos que se intitulam de 'esquerda' lutam contra o fascismo, que já não existe, para aceitar completamente o totalitarismo do mercado. Estes últimos são os que lutam na França contra Le Pen para aceitar de bom grado Macron. Lutam contra um fascismo que já não existe para poder aceitar a nova porrada invisível da economia de mercado. E, claro, a classe intelectual, o circo midiático e o clero intelectual desempenham um papel fundamental neste processo; a tarefa da classe intelectual, acadêmica e periodística é garantir que os dominados aceitem o domínio da classe dominante ao invés de se rebelar. De modo que, como na caverna de Platão, amem suas próprias correntes e lutem contra qualquer libertador.

P. Insistiu que com uma mão nos dão direitos civis e com a outra nos cortam direitos sociais. Nisto consistem as chamadas políticas da diversidade?

R. Os chamados 'direitos civis' [LGBT, feminismo e afins] são hoje em dia, na verdade, nem mais nem menos que os direitos do 'burguês', que Marx havia descrito em 'A questão judaica'. Em outras palavras, são os direitos do consumidor, como diríamos hoje, os direitos do indivíduo que quer todos os direitos individuais que pode comprar concretamente. Estou pensando nos ventres de aluguel, por exemplo, na custódia das crianças segundo a lógica de custo do consumidor. Pois bem, hoje estamos assistindo a um processo mediante o qual o capital nos corta os direitos sociais, que são direitos vinculados ao trabalho, à vida comunitária da pólis; anula estes direitos e, em troca, aumenta os direitos do consumidor, sempre vinculados a um consumo que se leva a cabo de maneira individual, sem questionar nunca a ordem da produção e o fato de que, realmente, terminam fortalecendo o sistema capitalista ao invés de debilitá-lo.

Além disso, criam uma espécie de microconflitualidade generalizada que atua como uma arma de distração massiva e, também poderíamos dizer, como uma arma de divisão massiva permanente. Por um lado, distrai da contradição capitalista que já nem sequer se menciona, e, por outro lado, por assim dizer, divide as massas em homossexuais e heterossexuais, muçulmanos e cristãos, veganos e carnívoros, fascistas e antifascistas, etc. E enquanto isso ocorre de maneira natural, o capital deixa que as pessoas saiam às ruas pelo orgulho gay, pelos animais e por tudo, mas que não se atrevam a fechar as ruas para lutar contra a escravidão dos salários, contra a precariedade ou contra a economia capitalista? De ser assim, aí está a repressão, como aconteceu na França com os Coletes Amarelos.

P. Salienta que os laços estáveis, representados no matrimônio, se converteram hoje em revolucionários. Por quê? Como mudaram as coisas para que algo radicalmente frequente na História se converta hoje em revolucionário? Em que consiste o consumismo erótico?

R. O capitalismo atual é flexível e precarizador. Desagrega toda a comunidade humana e quer ver em todas as partes o indivíduo sem identidade e sem vínculos, o consumir que trava relações descartáveis baseadas no consumo. Por isso, o capitalismo hoje declarou a guerra ao que eu, em meu livro 'Storia e coscienza del precariato. Servi e signori della globalizzazione' (Bompiani, 2018) chamo de raízes éticas em sentido hegeliano; quer dizer, aquelas formas comunitárias de solidariedade que vão desde a família até os organismos públicos como os sindicatos, a escola, a universidade, até se completar no Estado. Tem como objetivo rompê-las para reduzir o mundo a um mercado único, como disse Alain de Benoist: a sociedade se converte em um único mercado global. Esta é a razão pela qual hoje em dia a reetização da sociedade, quer dizer, a revalorização das raízes éticas em sentido hegeliano é um gesto revolucionário.

P. Afirma que deve-se recuperar Gramsci e distanciá-lo das esquerdas liberal-libertárias que hoje dominam e que são quem mais o utilizaram ultimamente e que encarnam exatamente o que Gramsci combateu. Definiria também, por ir ao caso espanhol, a Pablo Iglesias, ou Íñigo Errejón, e a Podemos em geral, como um fenômeno cultural de glorificação do capitalismo globalizado?

R. Sim, no essencial, Gramsci é todo o oposto do que está fazendo a esquerda na Itália e em grande parte da Europa, as esquerdas já não são vermelhas, mas fúcsias, já não são a foice e o martelo, mas o arco-íris. Lutam pelo capital e não pelo trabalho, lutam pelo cosmopolitismo liberal e não pelo internacionalismo das classes trabalhadoras. O caso específico de Podemos em Espanha me parece bastante interessante, porque começou como força soberanista e socialista, mais além da direita e da esquerda, mas me parece que ultimamente está entrando cada vez mais no fronte único do partido único do capital, e é realmente uma lástima porque o partido Podemos originalmente parecia ser um partido de ruptura.

P. Que papel deve desempenhar o intelectual neste cenário?

R. Na minha opinião, o intelectual de hoje deve restabelecer o que Gramsci chamada de 'conexão sentimental com o povo-nação', quer dizer, deve voltar a conectar o povo à política, à intelectualidade mesma, para que o povo saia da passividade e se transforme em subjetividade ativa, como já está acontecendo, na medida em que o povo está se rebelando contra a elite cosmopolita. Isso ele faz votando por Brexit, votando por Trump, votando na Itália contra o referendo constitucional, na Grécia pelo referendo contra a austeridade da União Europeia. Mas o povo, disse Gramsci, deve ser 'interpretado', necessita de uma filologia viva, o povo é um texto que deve ser interpretado e não dirigido de maneira unívoca. Deve-se escutar suas necessidades, suas exigências, o que a esquerda hoje não está fazendo; a esquerda é demofóbica, quer dizer, odeia o povo, odeia o povo porque o povo lhe escapa das mãos, já não se sente representado por uma esquerda amiga do capital e dos senhores, ao invés dos trabalhadores e do povo.

P. Propõe recuperar a utilização do italiano frente ao inglês, e além disso de um italiano bem falado ou escrito. Entende isso como uma batalha cultural imprescindível. Por quê?

R. Sim, eu proponho, contra a neolíngua dos mercados que fala o inglês do 'spread',  do 'spending review', da 'austerity' e da 'governance', uma veterolíngua baseada na recuperação do italiano com toda sua riqueza, o italiano de Dante e de Maquiavel. É uma batalha cultural de resistência á globalização e a este 'genocídio cultural', como chamada Pasolini, que a globalização está levando a cabo ao destruir as culturas em nome do único modelo permitido: o consumidor de mercadorias, apátrida, pós-identitário, que fala o inglês anônimo dos mercados financeiros apátridas.

via Elconfidencial