sábado, 30 de julho de 2016

Huldufólk: crença islandesa em elfos

Elfos dançando sobre um lago no crepúsculo. O conceito nórdico de elfo era muito semelhante às Criaturas da Terra ou espíritos protetores da natureza.
August Malmström, 1866.
 
Religião na Islândia Medieval

Capa de um manuscrito da Prosa Edda,
mostrando Wotan, Heimdallr, Sleipnir e
outras figuras da mitologia nórdica.
Islândia foi estabelecida pelos Nórdicos no século IX. Quando os vikings chegaram da Escandinávia, eles trouxeram com eles sua língua, cultura e religião nórdicas. Devido à localização da Islândia, sendo isolada por uma boa distância da Europa, a religião Nórdica sobreviveu muito mais na Islândia do que em qualquer outro lugar. Mesmo depois da cristianização, o clima cultural na Islândia era de tal modo que os costumes antigos conseguiram sobreviver juntamente da nova religião.

Na verdade, foi um cristão quem relembrou os mitos nórdicos como os conhecemos hoje. Snorri Sturluson reescreveu a Prosa Edda, também chamada de Edda Juvenil, bem como as Sagas dos Reis Nórdicos no século XIII. Embora a Islândia tenha se tornado decididamente cristã muito antes dos tempos de Snorri, o povo não se afastou de suas raízes como aconteceu aos outros europeus.

Embora a Igreja Católica Romana tenha sido responsável pela (frequentemente forçada) conversão da Europa nórdica, o catolicismo, em muitos casos, permitiu que as práticas dos povoados regionais mantivessem seus costumes como se houvessem entes cristãos sendo ali venerados. O culto aos santos é um bom exemplo. As deidades locais eram frequentemente re-rotuladas como santos locais. Assim, os locais puderam continuar venerando-os. Quando a Renascença ganhou força, entretanto, os reformadores investiram contra os aspectos "pagãos" do catolicismo. Crenças populares, vistas como remanescentes do paganismo, foram pisadas com grande fervor. Embora houvessem caçadas às bruxas na Islândia, a população era removida o bastante dos acontecimentos da Europa ao ponto das crenças sobreviverem comparativamente intactas.

Entre as antigas crenças que se mantiveram estava uma forte conexão com o Landvaettir e Huldufólk - as "criaturas da terra" e o "povo oculto".
Parque Nacional Jökulsárgljúfu, Islândia. Foto: Karl Kerling.

A Paisagem Mística
Ilha de Lava no Lago Mývatn.
Foto: Andreas Tille

Enquanto o isolamento da Islândia pôde tê-los separado ao ponto de proteger sua cultura, pode ter havido outra razão pela qual o folclore antigo sobreviveu. A paisagem da Islândia é... bem, é difícil de resumir em uma palavra. A paisagem é drástica, poderosa, dramática, que inspira temor, e você ainda poderá dizer que é mágica.

Apesar do nome da Islândia (N.T.: Terra do Gelo), a terra é bastante fértil, com uma abundância de verde durante partes do ano. Sendo uma nação-ilha, o mar era (e é) uma fonte de renda e sustento. Assim, os laços com a terra e o mar permaneceram fortes.

Ainda mais aguda é a ostentação da Islândia de incomuns fenômenos geológicos. É uma das mais ativas regiões vulcânicas da Terra. A atividade geotermal tal como os geysers (gáiseres) e as fontes termais são também abundantes. O que torna essa região tão única é que os vulcões e as fontes termais estão justapostos com as formações de rocha nevada e com os glaciares.
Gígjökull, glaciar se desprendendo de Eyjafjallajökull, Islândia. Foto: Andreas Tille

Terra de Fogo e Gelo
Erupção vista em Þórolfsfell.
Foto: David Karna

Assim, o que a geologia única da Islândia tem que ver com a sobrevivência da mitologia nórdica? Bem, é quase como se a terra fosse um vivo mensageiro de certos mitos. Fogo e Gelo são uma grande parte do imaginário envolvido no mito de criação nórdico.

Mustpelheim é a terra do calor e do fogo. É são quente que nada pode sobreviver ali exceto criaturas indígenas, como os jötunn (gigantes) de fogo.

Niflheim, por sua vez, é o oposto. É um frio nebuloso, terra do gelo. Nove rios de gelo fluem através desta gélida realidade.

Entre estas duas terras está um grande vazio chamado Ginnungagap. E estava no vazio onde o fogo e o gelo se encontram, faiscando a criação dos Nove Mundos.
Pôr do sol no Goðafoss, Winter, Islândia. Foto: Andreas Tille

A Crença nos Elfos nos Nossos Dias
Casinhas de elfos perto de Strandakirkja,
sul da Islândia.
Foto: Christian Bickel

Uma grande minoria da população islandesa abertamente admite acreditar em elfos e outras Entidades Ocultas nos nossos dias. Estas crenças sobreviveram o máximo possível nas áreas rurais, onde fazendeiros podem ainda comunicar-se com as Criaturas da Terra. Entretanto, a crença é surpreendentemente prevalecente em áreas urbanas também. Muitas casas residenciais prestam homenagem aos elfos do jardim construindo casinhas para eles. Casinhas de elfos podem ser vistas pontilhando o país.

Embora apenas uma pequena porcentagem de pessoas admitirão acreditar neles, uma muito alta porcentagem da população ainda não negará sua existência. Muitas pessoas não abertamente dizem que os elfos são reais, mas ao mesmo tempo tomam precauções para evitar incomodá-los. É algo como que dizer que "os elfos provavelmente não existem, mas eu não quero de qualquer forma me precipitar, caso eles mesmo existam!".

Elfos Moram em Grandes Rochas
Álfaborg, castelo das criaturaspróximo a Borgarfjörður.
Foto: Schorle

Islandeses acreditam que elfos vivem dentro de pedregulhos e grandes formações rochosas. Se um pedregulho é conhecido por ser morada de um elfo, é considerado desrespeitoso escalá-lo ou se intrometer no local de qualquer modo. Má sorte pode cair sobre alguém que incomoda os elfos.

É interessante que mesmo que o número de pessoas que abertamente dirão "eu acredito em elfos" é uma minoria, o público ainda aconselhará a parar projetos de construção que passarão por cima de terra acreditada ser ocupada por elfos.

Estradas e construções de autoestradas foram abortadas e alteradas quando o público soube que as rochas dos elfos iriam ser demolidas.

As bases militares dos Estados Unidos na Islândia foram investigadas pelos locais por pôr em perigo o bem-estar dos elfos indígenas. Em 1982, 150 pessoas apareceram na base naval dos EUA clamando que as atividades militares dos EUA estavam pondo em perigo a vida dos elfos nativos.

Algumas vezes "portas de elfos" foram feitas de madeira e pintadas em colorido pelos locais para serem colocadas em frente a rochas conhecidas por serem povoadas por elfos. Isto serve como uma marca de identificação a fim de que os outros saibam não se intrometer nestas rochas.

Comunicação com os Elfos
Um garotinho fala com uma princesa elfo.
Ilustração: John Bauer

Os elfos islandeses se comunicam com os humanos de vários modos. Eles podem expressar insatisfação de modos que não são verbais, mas nunca menos descaradamente. Por exemplo, eles podem fazer rolar pedras e causar outros desastres naturais a fim de fazer conhecer que a atividade humana está os ameaçando e enraivecendo. Eles podem também causar doenças em humanos, destruição de colheitas e doenças em mantimentos.

Quando os elfos estão contentes, no entanto, eles podem abençoar um fazendeiro com uma abundante safra, ou agraciar sua região com climas agradáveis e mares calmos para a navegação.

Sonhos são outro modo de comunicação do elfo com os homens. Um construtor islandês registrou que estava planejando remover um pedregulho em seu projeto, e uma elfo que nele vivia veio a ele em sonho. Ela suplicou que ele deixasse sua família por um tempo até que recolhessem seus pertences a fim de encontrar alojamento temporário até que o pedregulho fosse realocado, momento em que eles poderiam voltar. O construtor estagnou a realocação do pedregulho por alguns dias, adiando a construção. Quando questionado por isso, o construtor recusou mudar os planos. Tratar os elfos com respeito era simplesmente a coisa certa a se fazer.

Elfos podem falar diretamente com os homens em ocasiões. A maioria das pessoas não são capazes de vê-los, mas indivíduos agraciados com habilidades psíquicas mediúnicas podem ser capazes de ver e se comunicar com os elfos.

Entretanto, se você andar por alguma vila islandesa, você possivelmente encontrará a dona de casa que diz que pode ver e falar com os elfos residentes no seu jardim.
 
via exemplore

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Os Saami: povo de pastores de renas do extremo Norte

Família Saami na Noruega em torno de 1900 (imagem de domínio público)
 
Quem são os Saami?

Os Saami, também falado Sami, são um povo indígena que viveram no extremo norte da Escandinávia por centenas, senão milhares de anos. Embora fossem vizinhos dos Antigos Nórdicos, eles eram um grupo étnico inteiramente distinto. Enquanto as línguas oficiais da Noruega, Suécia e Dinamarca são germânicas, a língua dos Saami pertencem à família fino-úgrica (juntamente com finlandeses, húngaros e outros). Assim, enquanto estão espalhados por estas nações (exceto Dinamarca) eles são uma cultura distinta e separada.

Discriminação Histórica
Os Saami ocupam Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia

A região tradicionalmente ocupada pelos Saami é conhecida como Sápmi. Ela é considerada uma "região cultural", mas não é uma nação.

Embora os Saami estejam espalhados por uma vasta extensão de terra, eles foram historicamente discriminados e não têm seu próprio estado-nação.

Como povos indígenas de outras terras, tais como os Nativos Norte Americanos por exemplo, foram submetidos a programas de assimilação, tentativas foram feitas para romper a cultura Saami e assimilar seu povo às culturas maiores dos países onde viveram.

Por causa dessas campanhas, elementos da cultura Saami começaram a morrer e entraram em perigo de desaparecerem para sempre. Esforços massivos para converter os Saami de sua religião nativa foram instituídos pelos luteranos durante os séculos XVIII e XIX. Muitas crianças Saami foram forçadas a falar norueguês ou sueco ao invés de sua própria língua.
Bandeira dos Saami e da "região cultural" Sápmi

Infelizmente, isto não era incomum durante as eras recentes. Há paralelos não apenas com os nativos da América do norte, mas isto também ocorreu com os falantes de língua celta na Irlanda, no País de Gales e outras áreas da Grã-Bretanha.

Assim como muitos outros grupos foram tratados como inferiores pela população dominante, os Saami foram frequentemente zombados e olhados por cima. Por muitos anos eles foram chamados de "Lapões" e sua morada conhecida por "Lapônia". Até hoje muitas pessoas não sabem que o termo "lapão" é ofensivo aos Saami. Aparentemente o termo se refere a trapos e implica que eles são um "povo que veste trapos". Hoje, o termo Saami ou Sami é preferido.

Os Saami e Suas Renas
"Pastor Laestadius instruindo os lapões" por François-Auguste Biard, 1840

Um homem e uma criança Saami, em Finnmark, Noruega, 1900
Dever-se-ia dizer que os Saami, como alguns outros povos, tiveram uma ampla variedade de ocupações. Pastoreio de renas é uma pela qual eles são mais conhecidos, mas isso não é tudo que os Saami fazem ou fizeram historicamente. Isso pode algumas vezes ser um ponto de contenção quando afirmações são feitas de que todos os Saami são pastores de rena. Dito isto, é verdade e justo dizer que o pastoreio de renas é um grande aspecto da cultura Saami por gerações.

Até os nossos dias, o pastoreio de renas é ainda praticado por muitos Saami. Os animais vivem uma vida semi-selvagem, gastando muito do seu tempo vagando para pastar em amplos espaços abertos do extremo norte. Os Saami dirigem as renas para casa em determinados momentos para contar e alimentar o gado.

As renas e o povo Saami viveram juntos em harmonia por centenas de anos. Os animais providenciam aos Saami comida, couro para roupas, e as galhadas eram usadas para fabricar ferramentas e outros utensílios domésticos.

Uma mulher sueca vestida em trajes tradicionais Saami com uma rena branca. Foto: Anthony Randell
Mas a conexão com as renas é mais antiga do que se pode datar. As renas constituem um significado espiritual e cultural simbólico para o povo Saami. Eles aparecem bastante em mitos, lendas e artes tradicionais.

Cartão postal vintage da "Lapônia".

Shamãs do Norte

Conforme dito acima, os Saami enfrentaram injúrias e perseguições durante séculos. Um elemento maior de sua cultura que foi atacado com grande vigor foi sua religião ancestral.
Cópia do tambor rúnico pertencente ao centenário Saami Anders Paulsen. Departamento Cultural do Museu em Olso, Noruega. O tambor rúnico foi confiscado pelas autoridades de Vadsø em 1691. Foto por Sandivas.

A espiritualidade indígena dos Saami é uma forma antiga de animismo. Central ao seu sistema de crença era a presença de shamãs. Estes shamãs são conhecidos por seus tambores do espírito fabricados à mão que eram usados para bater um transe induzindo um ritmo para uma jornada ao mundo do espírito. Os tambores dos shamãs eram feitos de couro animal, frequentemente pele de rena. Desenhado no tambor estaria um mapa que dirigia o shamã para os Outros-mundos.

Uma ilustração antiga de um shamã Saami tocando tambor em transe. Note que o artista interpreta a jornada do espírito do shamã como demoníaca.
Contrariamente à crença popular, punhados de povos europeus ainda não tinham sido cristianizados ao fim da Idade Média e até mesmo durante a Idade Moderna. Os Saami foram um destes grupos. A Europa do Norte foi por muito tempo considerada o último bastião do paganismo, e muitos livros ensinavam que os nórdicos vikings eram os últimos europeus a se converterem ao cristianismo. Isto é falso. Muitos outros povos mantiveram-se firmemente fiéis a suas religiões nativas por centenas de anos depois da conversão dos povos germânicos e nórdicos. Os bálticos são assim um exemplo, quando o grande reino da Lituânia se manteve antes de sucumbir aos invasores teutônicos. O povo de Mari El, que vivem profundamente adentro da Rússia, são outro grupo de pessoas que mantiveram-se fortemente agarrados aos costumes nativos.

Em torno do século XVIII e XIX, e até mesmo do XX, os Saami foram mirados por missionários luteranos para conversão e assimilação. Suas crenças espirituais ancestrais foram incompreendidas e rotuladas de demoníacas. Ao mesmo tempo que sua religião era dissolvida, os Saami foram desencorajados a falar as línguas nativas. Eles foram também subjugados à propriedade privada, e perderam muito de suas pastagens ao longo dos anos. Mesmo aos nossos dias os Saami lutam para reconquistar a terra na qual viveram e puseram seu gado para pastar por centenas de anos.

Renovação e Renascimento da Cultura
Homem Saami em vestes tradicionais. Foto: Norbert Kiss

Nos últimos anos houve uma renovação do orgulho popular entre os Saami. Eles usam recursos como a internet para conectar com outros Saami por longas distâncias e promovem caminhadas para promover seus interesses comuns. Eles deram vozes ao demandar os direitos e o respeito que eles merecem.

Assim como outros grupos na Europa e em outros lugares estão revivendo suas crenças ancestrais, alguns Saami estão revivendo sua própria religião indígena e reintroduzindo o shamã Saami.

Outros aspectos da cultura estão recebendo atenção também. Muitos artistas Saami estão trazendo sua música tradicional ao escopo internacional. Sua música tende a possuir insinuações do som de uma tribo ouvido em outras culturas indígenas ao redor do mundo, com um nível de influência folk escandinávia, mas um som que é distintamente Saami.

Há muitas culturas belas ao redor do mundo. Mas há algo de especialmente mágico nos Saami. Pode ser o simples mas profundamente significativo modo com o qual eles tradicionalmente existiram no esbranquiçado de neve extremo norte. Pode ser sua assombrosamente bela música folk, ou o contraste entre as vívidas cores de suas roupas tradicionais contra o branco limpo da neve. Este povo parece manter algo que muitos de nós há muito perdemos; uma profunda conexão com a natureza e com os animais com os quais eles compartilham sua morada.
 
 
 
via hubpages

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Trabalho, educação e cultura

por Alberto Buela

Trabalho

Costuma-se recomendar na filosofia, assim como fizeram entre outros Heidegger, Zubiri, Bollnow e nosso Wagner de Reyba, que a primeira aproximação (aproximación) ao objeto de estudo seja através de um aperfeiçoamento (acercamiento) etimológico. Porque, como afirma Heidegger: "a linguagem começa e termina ao fazermo-nos sinais da essência de uma coisa"[1]. Assim comprovamos que o trabalho provém do verbo latino tripaliare que por sua vez provém de tripalium=três varas (palos), que era um poste ou jugo feito com três varas onde se atavam os bois e também os escravos para açoitar. Vemos como o aperfeiçoamento etimológico ao termo trabalho nos revela sua vinculação ao sofrer, a qualquer atividade que produz dor no corpo. Daqui que o verbo tripaliare significa em latim atormentar, causar dor, torturar.

Esclarecido o termo passemos agora a sua descrição fenomenológica. O trabalho, que pode ser definido como a execução de tarefas que implicam um esforço físico ou mental para a produção de algum tipo de bens ou serviços para atender as necessidades dos homens, tem duas manifestações: como opus= obra e como labor=labor. Enquanto a obra expressa o produto ou bem objetivo que produz, assim como labor expressa o produto subjetivo que logra.

Sobre a obra não há discussão, a obra está aí, ao alcance da mão e da vista, no máximo se pode discutir se esta está bem ou mal feita. O assunto se complica no trabalho como labor, pois implica uma subjetividade, a do trabalhador. Pois no labor está implicado a expressão do próprio trabalhador. Até não muito [tempo atrás] se reservava o termo de "labores" a uma matéria nos colégios de senhoritas. Creio que a matéria se denominava "manualidades e labores", onde tecido (hilado), o bordado, o tecido (tejido) e a costura constituíam sua temática. É que o trabalho como labor implica a formação profunda do homem que trabalha. Não é necessário esclarecer que o termo homem compreende tanto a mulher quanto o varão, pois ambos formam parte do gênero homem. A língua alemã possui também dois termos para designar as manifestações do trabalho: Arbeit para obra e Bildung para labor. E este último tem o sentido de formação.

E aqui é onde encontramos nós a vinculação entre o trabalho e a escola: na busca não tanto da informação, de conhecimentos, mas na busca da formação do educando.

E a isto sobretudo ajuda o trabalho em uma época tão dessacralizada como a que hoje nos toca viver, pois o sagrado desapareceu de nossa consciência habitual. E a educação nos valores morais se tornou muito difícil, tendo em conta que o que o menino vê diariamente é corrupção, crimes, assassinatos, roubos, golpes, droga, desordem, anomia etc.

Assim o trabalho é o único meio que temos em mãos para criar virtude[2], pelo menos pela repetição de atos, de nos levantarmos todos os dias cedo ainda que não gostamos. De lavarmos o rosto e nos pentearmos. A cumprir um horário. De ter que escutar o companheiro de trabalho com suas diferenças e nos acostumarmos a conviver com o outro, ainda que mais não seja por oito ou seis horas diárias. O trabalho limita e faz moderar (morigera) o capricho subjetivo, de onde nascem todas nossas arbitrariedades e nossos males.

E como a virtude se funda na repetição habitual de atos bons, o trabalho nos permite o passo inicial à virtude, que é fazer as coisas bem, corretamente, evitando o dano ao outro e ao meio ambiente.

Em nosso país temos tido o privilégio de proclamar que existe uma só classe de homem: o que trabalha. Ou outro: governar é criar trabalho. Incluso a máxima obra teórico-política que com traços próprios e originais se realizou na Argentina durante o século XX foi a Constituição do Chaco de 1951, onde em seu preâmbulo afirma: Nós o povo trabalhador... e não como as Constituições de 1853, incluso a de 1949 e a atual 1994: Nós o povo... ao típico estilo liberal, filho dos jjuristas da Revolução Francesa.

É que em uma época não tão longínqua se sustentava e se proclamou aos quatro ventos o ideal da liberação pelo trabalho e através dele, a poupança (ahorro).

Hoje, pelo contrário, o não-trabalho e o subsídio vieram substituir o ideal da liberação pelo trabalho. Esperemos que não seja para sempre e possamos retomar tão louvável ideal.

Educação

Como fizemos com o termo trabalho, observamos que educação vem do latim ducere que significa guiar, conduzir. De modo que educar consiste em poder guiar conduzir o educando ao logro de sua formação de homem como tal.

Este ideal educativo nos chega dos gregos com sua famosa paideia, que significou a formação do homem de acordo com seu autêntico ser; o da humanitas romana do Varrón e Cicerón, de educar o homem de acordo com sua verdadeira forma humana; o do mundo cristão com sua ideia de exemplariedade em todos os tratados De Magistro dos pensadores medievais que têm Cristo como mestre dos mestres e o do mundo moderno com Johann Pestalozzi e seu método.

Todo este ideal educativo se plasmou em nosso país a partir da lei 1420 pela qual a educação primária tem como objetivo a eliminação do analfabetismo e a formação no menino dos valores morais. (Ensinam-se modos maneiras, costumes. Em uma palavra, ensinam-se hábitos práticos etc.) De igual maneira a educação média tem por objetivo fortalecer a consciência de pertença histórico-política à Nação a que se pertence. (Ensinam-se valores cidadãos e pátrios. Em uma palavra hábitos socio-políticos)

E finalmente a educação superior que tem por objetivo entregar um método de estudo sistemático e reconhecido, onde os logros dos níveis prévios podem se expressar e se detectem as carências. Todo este ideal educativo se questionou a partir do último quarto do século XX quando massivamente a escola deixou seus ideais de formação para se limitar, no melhor dos casos, a ser uma simples transmissora de conhecimentos.

A escola, e há que recordar mais uma vez, como seu nome indica é e deve ser antes que nada o lugar do ócio. O termo vem do latino schola, o que por sua vez vem do grego (scholé, N.A) que significa ócio. Antes que qualquer coisa, a escola é o lugar do ócio. Se se quer, o lugar onde não se faz nada. Nada de útil, nada que não tenha seu fim em si mesmo. Nada em vista de outra coisa que não seja a formação do próprio educando. O caráter de útil, a utilidade, vem depois da escola e é em geral uma preocupação dos pais. Uma vez que se determinou a escola se verá se seus ensinos são úteis. Mas a escola não é outra coisa que o lugar para aprender no ócio. É o desfrutar jogando na aprendizagem, uma aprendizagem que vale por si mesmo e não em vista de outra coisa. Este aprender é por nada. Tem um fim em si mesmo que é o acesso ao saber e à sabedoria.

Faz 2500 anos Platão na Carta VII nos legou um ensino perdurável de como nos aproximarmo-nos do saber e da sabedoria: primeiro através do nome, depois buscando a definição, em terceiro lugar a imagem representada para chegar por último ao conhecimento mesmo. E para que se entenda põe o exemplo do círculo. Em primeiro lugar temos um nome chamado círculo, depois buscamos a definição composta de nomes e predicados: aquele cujos extremos distam todos igual do centro. Em terceiro lugar a imagem como representação sensível, cópia imperfeita e não permanente exemplificada por círculos e rodas. Para chegar finalmente ao conhecimento mesmo, tudo o que "depois de uma longa convivência com o problema e depois de ter ganhado intimidade com ele, de repente, como a luz que salta da faísca, surge a verdade na alma[3].

Cultura

Cada vez que escutamos falar de cultura ou de gente culta, associamos a ideia com a gente que sabe muito, que tem títulos, que é lida, como diziam nossos pais, longe e há tempo. É por isso que fez fama, apesar de sua demonização política, a frase de Goebbels: Cada vez que me falam de cultura levo a mão ao meu revólver. Porque sintetiza melhor que nada, em um brevíssimo juízo, o rechaço do homem comum, do homem de classes mais baixas (pueblo llano), ao monopólio da cultura que desde a época do Iluminismo para cá possuem e exercem os ilustrados e suas academias.

Cultivo

Por outro lado, para nós cultura é o homem se manifestando. É tudo aquilo que ele faz sobre a natureza para que esta lhe outorgue o que de seu e espontaneamente não lhe dá. É por isso que o fundamento último do que é cultura, como seu nome indica, é o cultivo.

Cultura é tanto a obra do escultor sobre a pedra amorfa quanto a obra do torneiro sobre o ferro bruto ou como a da mãe sobre a manualidade do menino, quando lhe ensina tomar o talher.

Vemos de início não mais, como esta concepção é diametralmente oposta a essa noção livresca e acadêmica que mencionamos no começo.

O termo cultura provém do verbo latino colo/cultum que significa cultivar.

Para o pai dos poetas latinos, Virgílio, a cultura está vinculada no genis loci (o nascido da terra em um lugar determinado) e ele lhe outorgava três traços fundamentais: clima, solo e paisagem.

Caracterizado assim o genius loci de um povo, este podia compartilhar com outros o clima e a paisagem, mas não o solo. Assim como nós os argentinos compartilhamos o clima e a paisagem com nossos vizinhos, mas não compartilhamos o solo. E isso não apenas porque é que neste último se assenta o Estado-Nação, mas da perspectiva de Virgílio o solo é para ser cultivado pelo povo[,] sobre ele assenta para conservar sua própria vida e produzir sua própria cultura.

Enraizamento

Mas para que um cultivo frutifique, este deve deixar boas raízes, profundas e vigorosas que deem seiva ao plantado. Toda cultura genuína exige um enraizamento (arraigo) como o exige toda planta para crescer vigorosa e forte, e neste sentido recordemos aqui de simone Weil, a mais original filósofa do século XX, quando em seu livro L'Enracinement nos diz: o reconhecimento da humanidade do outro, este compromisso com o outro, só se faz efetivo se há "raízes", sentimento de coesão que enraiza as pessoas a uma comunidade"[4]. A filósofa deu um passo além, pois, passou do mero deixar raízes ao enraizamento que sempre indica uma pertença a uma comunidade em um lugar determinado. O enraizamento, diferente da terra natal que é o pedaço de terra natal, abarca a totalidade das referências à vida que nos são familiares e habituais. O enraizamento genuíno se expressa em um ethos nacional.
Fruto

Logo de ter arado, rastreado, semeado, regado e esperado o amadurecer, aparece o melhor que dá o solo: o fruto, que quando é acabado, quando está maduro, quer dizer perfeito, dizemos que o fruto expressa plenamente o labor e então nos gosta.
Sabor

E aqui aparece um desses paradoxos da linguagem que nos deixam pensando sobre o intrincado emparelhamento entre as palavras e as coisas Nós ainda usamos para expressar o gosto ou o prazer que nos produz um fruto ou uma comida uma velha expressão em castelhano: o fruto nos "sabe bem". E saber provém do latim sapio, e sapio significa sabor. De modo tal que podemos concluir que o homem culto não é aquele que sabe muitas coisas, senão o que saboreia as coisas da vida.

Sapiente

Existe para expressar este saber um termo que é o de sapiente, que nos indica, não só o homem sábio, mas aquele que une a si mesmo sabedoria mais experiência pelo conhecimento de suas raízes e sua pertença ao meio[5]. Os antigos gregos tinham uma palavra para expressar este conceito: (phrónesis)

Vemos, então, como a cultura não é algo externo, mas que é um fazer-se e um manifestar-se da coisa mesma (uno mismo). Por outro lado a cultura, para nós argentinos, tem que se americanizar, mas isto não se entende se se concebe a cultura como algo externo. Como uma simples imitação do que vem de fora, do estrangeiro.

Não há que esquecer que por detrás de toda cultura autêntica está sempre o solo. Que como dizia nosso mestre e amigo o filósofo Rodolfo Kusch: "Ele simboliza a margem de enraizamento que toda cultura deve ter. É por isso que se pertence a uma cultura e se recorre a ela nos momentos críticos para enraizar-se e sentir que está com uma parte de seu ser preso ao solo"[6].

Cultura e Dialética

É sabido desde Hegel para cá que o conceito é "o que existe fazendo-se", que para ele, encontra sua expressão acabada na dialética, que tem três momentos: o suprimir, o conservar e o superar. E não a vulgar expressão de tese, antítese e síntese a que não têm se acostumado os manuais. Temos visto até agora como a cultura põe fim, faz cessar a insondável completude (oquedad) da natureza primitiva com o cultivo, a pedra ou o campo bruto, por exemplo, e em um segundo momento conserva e retém para si o sabor e o saber de seus frutos, vgr.: as obras de arte. Falta ainda descrever o terceiro dos momentos desta Aufhebung ou dialética[7].

Se bem podemos, em uma versão sociológica, entender a cultura como o homem se manifestando, "a cultura, afirmamos em um velho trabalho, não é só a expressão do homem se manifestando, mas que também envolve a transformação do homem através de sua própria manifestação"[8].

O homem não só se expressa através de suas obras, mas que suas obras, finalmente, o transformam ele mesmo. Assim na medida em que passa o tempo o campesinato se mimetiza com seu meio, o obreiro com seu trabalho, o artista com sua obra.

Esta é a razão última, em nossa opinião, pela qual o trabalho deve ser expressão da pessoa humana, porque do contrário o trabalhador perde seu ser nas coisas. O trabalho devém trabalho alienado. E é por isso, por um problema eminentemente cultural, que os governos devem privilegiar e defender como primeira meta e objetivo: o trabalho digno.

Esta imbricação entre o homem e seus produtos onde em um primeiro momento aquele quita o que sobra da pedra dura ou o ferro amorfo para dar-lhe a forma preconcebida ou se se quer, para desocultar a forma, e, em um segundo momento se goza em seu produto, para, finalmente, ser transformado, ele mesmo, como consequência desse deleite, desse sabor que é, como vimos, um saber. Esse saber gozado, experimentado, é o que cria a cultura genuína.

Assim a sequência cultura, cultivo, enraizamento, fruto, sabor, sapiência e cultura descreve esse círculo hermenêutico da ideia de cultura.

Círculo que se alimenta dialeticamente neste fazer-se permanente que é a vida, onde compreendemos o mais evidente quando chegamos a conjecturar o mais profundo: que o ser é o que é, mais o que pode ser.

Resumindo, vimos como o trabalho gera virtude, pelo menos mundana ou não transcendente, que se relaciona com a educação enquanto ambas atividades buscam a formação do homem em seu ser, para que este possa plasmar em sua vida uma cultura genuína, isto é, vinculada a seu enraizamento.

NOTAS

[1] Heidegger, Martín: Poéticamente habita el hombre, Rosario, Ed. E.L.V., 1980, p. 20.-

[2] Outro grande iniciador laico, em algumas virtudes, é o esporte.

[3] Platão: Carta VII, 341 c4. Também em Banquete 210e 

[4] Weil, Simone: Echar Raíces, Barcelona, Trotta, 1996, p. 123.-

[5] Buela, Alberto: Traducción y comentario del Protréptico de Aristóteles, Bs.As., Ed. Cultura et labor, 1984, pp. 9 y 21. "Temos optado por traduzir phronimós por sapiente e phrónesis por sapiência, por dois motivos. Primeiro porque nossa menosprezada língua castelhana é a única das línguas modernas que, sem forçar, assim o permite. E, segundo, porque dado que a noção de phrónesis implica a identidade entre o conhecimento teórico e a conduta prática, o traduzi-la por "sabedoria" a seca, tal como se fez habitualmente, é mutilar parte da noção, tendo em conta que a sabedoria implica antes de nada um conhecimento teórico".

[6] Kusch, Rodolfo: Geocultura del hombre americano, Bs.As. Ed. F.G.C., 1976, p.74.

[7] Buela, Alberto: Hegel: Derecho, moral y Estado, Bs.As. Ed. Cultura et Labor- Depalma, 1985, p. 61 "Em uma sucinta aproximação podemos dizer que Hegel expressa o conceito de dialética através do termo alemão Aufhebung ou Aufheben sein, que significa tanto suprimir, conservar como superar. A palavra tem em alemão um duplo sentido: significa tanto a ideia de conservar, manter como ao mesmo tempo a de cessar, pôr fim. Claro está que estes dois sentidos implicam um terceiro que é o resultado da interação de ambos, que é o de superar ou elevar. Daí que a fórmula comum e escolástica para explicar a dialética é a de: negação da negação".

[8] Buela, Alberto: Aportes al pensamiento nacional, Bs.As., Ed. Cultura et labor, 1987, p.44.- 


sábado, 2 de julho de 2016

Contos de fadas são mais antigos que mitos gregos e a Bíblia

Cinderela, indiscutivelmente um dos mais famosos contos de todos os tempos, crê-se que tenha sido originado apenas no fim do século XVII. Da mesma forma outras histórias e narrativas reconhecidas tradicionalmente fizeram sua estreia na consciência popular apenas depois dos séculos XVIII e XIX. Entretanto, uma pesquisa (publicada no Royal Society Open Science) parece mudar a situação. De acordo com as investigações, muitos dos contos (senão todos) não apenas datam de tempos anteriores às línguas europeias, mas são também mais antigos que a maioria das grandes religiões do mundo. De fato, a pesquisa alude a como a confecção de tais narrativas possivelmente influenciou o quadro dos famosos caracteres mitológicos gregos e romanos. E, interessantemente, os pesquisadores conectaram às tradições folclóricas anteriores aos falantes indoeuropeus muitos desses mitos.

De modo simples, de acordo com os pesquisadores, muitos desses contos de fadas têm em torno de 4000 e 6000 mil anos de idade. Os dois autores do estudo - Jamshid Tehrani da Universidade de Durham e Sara Graça da Silva da Nova Universidade de Lisboa, começaram seu projeto identificando em torno de 275 contos de fadas com origens aparentemente indoeuropeias. Este arranjo de contos foi utilizado para analisar como o folclore era possivelmente familiar a populações proximamente familiares umas às outras - tanto em termos de suas respectivas línguas como de suas habitações geográficas. Em outras palavras, a avaliação permitiu aos especialistas distinguir entre contos que eram intrinsecamente parte de uma proto-cultura e histórias que eram mais 'globais' em natureza - espalhadas por viajantes e mercadores.

Depois de algumas avaliações rigorosas, os pesquisadores foram capazes de diminuir sua lista para 76 contos que provavelmente compartilharam um legado comum. Estes espécimes folclóricos comuns foram então conectados a alguns ramos das línguas indoeuropeias - muito parecido com o processo usado ao estudar uma árvore familiar genealógica. E ao traçar os pontos, os pesquisadores concluíram que o conto mais antigo dentre os escolhidos era "O Ferreiro e o Diabo". A história esposa o tropo familiar de uma pessoa vendendo sua alma ao diabo em troca de algum poder extraordinário. E os pesquisadores hipotetizaram que esse conto de fada foi esquematizado pelos ancestrais da Idade de Bronze dos falantes indoeuropeus. Similarmente, estes especialistas também acreditam que as famosas fábulas como 'A Bela e a Fera', 'O Anão Salteador' e 'João e o Pé de Feijão' todas tiveram suas origens antes do surgimento das línguas europeias modernas.

Interessantemente, no caso de O Ferreiro e o Diabo, a história pertence a uma realização tecnológica na história humana, melhor conhecida como metalurgia. Isso talvez ajuda a resolver a questão história com relação a como as línguas indoeuropeias foram desenvolvidas no contexto da linha histórica do desenvolvimento tecnológico. Os pesquisadores acreditam aqui que as línguas evoluíram só depois de avanços feitos no trabalho com metais. Mas claro que além de apenas metais e magias, alguns dos contos populares perscrutam a moralidade e o comportamento ético, como na história de Os Animais Encantados, onde o herói resgata um grupo de animais a fim de conquistar o afeto de uma princesa. Estas narrativas por sua vez aludem à dicotomia que tem sido prevalente desde então, com contos que cercam a relação (e o conflito) entre o bem e o mal, homens e mulheres, moral e imoral, e a justificação subjetiva do correto e do errado.

Jack Zipes, um professor emérito da Universidade de Minnesota, e um bem conhecido especialista no campo de fábulas e contos de fadas disse (para Discovery News) que

Tehrani e Graça da Silva demonstraram claramente e cientificamente que as origens dos contos populares e de fadas podem de fato ser traçadas até as sociedades antigas ao usar métodos filogenéticos. Seu trabalho pode servir como fundamento para estudos que investigam por que certos tipos de contos foram originados, como eles se disseminaram e se espalharam ao redor do mundo, e por que continuamos a contar os mesmos contos, embora em diferentes modalidades, no presente. 

via Realmofhistory