domingo, 27 de janeiro de 2019

O Que é a Modernidade?


Por Rachid Achachi (رشيد العشعاشي)

O Que é a Modernidade? (ما معنى الحداثة؟)


Primeira parte do texto 'O que é a modernidade?', que se inscreve na continuidade da análise precedente 'O momento moderno ou o desencantamento do mundo'.

Definida às vezes como uma fase histórica, às vezes como um paradigma (نموذج فكري) ou uma representação do mundo (تصوّر للعالم/ Weltanschauung), ou ainda como sendo movimento do progresso técnico, vista como uma ruptura ontológica (قطيعة وجودية),... a "modernidade/ الحداثة" é e não é tudo isso. Ela é antes de tudo a emergência de um sujeito individual (individualismo: الفردية، الفردانية) sempre retrocedendo, evanescente (متلاشي), nascido de um décosmie (قطيعة مع الكون) a partir do qual definirá para si os fundamentos e os contornos.


- A modernidade ou o eterno retorno do novo:

Etimologicamente (etimologia: علم أصول الكلمات), a modernidade procede de um "mode", do latim "modus", significando literalmente isso que é "recente/ novo: حديث، جديد" e se opõe a "arcaico/antigo: قديم ". Ela não é por conseguinte confundida com a "contemporaneidade: المعاصرة", uma vez que as pessoas da antiguidade ou da Idade Média são contemporâneos de sua antiguidade ou sua Idade Média. Não é menos verdade que eles não são modernos. Pois o "culto ao novo: عبادة الجديد" da modernidade não é o desejo de um evento único (hapax: حدث فريد), sendo uma ruptura definitiva, nem o advento de uma nova era (حقبة جديدة) e realizada na qual um novo mundo será construído, mas é a razão de ser da modernidade, sua essência, e é por isto que ela é indefinidamente nascente.


تعريف أولي للحداثة : التجديد أو القطيعة المتواصلة باستدامة. القطيعة لا لغاية مُحَدَّدة، لكن كغاية لذاتها. القطيعة من أجل القطيعة.

Uma primeira definição da modernidade pode ser dita assim: "o novo sempre recomeçado". Um novo que, uma vez engendrado, deixa de existir quase que imediatamente, e assim sucessivamente. Um eterno retorno da mudança. Ela é uma dialética negativa.

Contudo, a modernidade não é redutível à novidade (الحداثة لا تختصر في مستجدَّاتِها), esta última não é senão a convulsão crônica (تَشَنُّجات مُزمِنة). Suas múltiplas rupturas convulsivas serão comparáveis às ondas que a modernidade mantém e cavalga para nunca se afogar, em uma fuga para frente, o mais longe possível da sombra do passado (فرارا من جَزَعِ الماضي). Mas não muito longe, o novo tem necessidade do antigo para a ele se opor. Ela é assim uma função negativa em relação ao passado. Particularmente ao passado "imediato", sendo ela o ultrapassamento permanente. A modernidade é o que transborda os modernos que, enquanto contemporâneos, "não param de correr atrás dela"[1].


Citamos o exemplo filmado (clica aqui) do jornalista Daniel Schneidermann diante do célebre personagem não-binário. Neste diálogo incomum, o único "moderno" sobre o tablado foi o "personagem não-binário" na medida em que ele incarna neste instante a vanguarda da modernidade em movimento. Enquanto isso, Schneidermann, ele se crendo "moderno", vendo-se tendido à fase precedente (feminismo, homossexualidade, ...) doravante no ultrapassamento da modernidade, se torna reacionário.

Dito de modo mais simples: a "modernidade" é um desejo e uma dinâmica permanente de ultrapassamento do passado. O mais longe em relação a que ela julga arcaico ou retrógrado e que é uma questão de desconstruir para se libertar. Então, o mais recente, sabendo-se "mais recente" é o produto mesmo da modernidade. Mas como ela segue de novo para mais longe nas rupturas, pois é esta sua natureza, ela se põe a considerar isto que ela engendrou no passado como um passado a ser desconstruído.


- A modernidade como função negativa do passado:

Ela não existe senão como um "contra", um negativo de sua anterioridade mais recente. Não pode haver, como aponta Fabrice Hadjadj [2], "tradição da modernidade", e é esta sua fragilidade intrínseca (الحداثة تفتقر إلى أصالة. و هنا يكمن ضعفها و هشاشتها). Isso que aponta Rosenberg em sua obra "a tradição do novo" nestes termos: "no século XX a única tradição vital cuja crítica pode se reclamar é esta do rejeito de toda tradição" [3]. Pois a tradição precisa de um ancoradouro (مرسى) e um enraizamento (تَجَدُّر),, permitindo uma transmissão de sentido (tradição, do latim, "traditio", do verbo "tradere", ação de transmitir). Mas a modernidade não produz sentido, ela é intrinsecamente um desvio de sentido (انحراف معنوي و دلالي). Dito de outro modo, uma "anomia [4] permanente, لامعيارية و انحلال مستدام " e sempre renovada. Ela é por consequência uma dinâmica anti-predicativa graduada por saltos qualitativos (نَزْلَةٌ نوعية).

الحداثة حَرَكِية يترتَّب عنها تفكيك و نزع تدريجي للحجاب المعنوي الذي يغلف الأشياء، الظواهر و الكائنات.


Sua suposição (نشأتها و صعودها) se faz por regressão gradual (تراجع تدريجي) através de ersatz (بدائل زائفة)
da sua anterioridade. Dito de outro modo, cada vez que a modernidade desconstrói um predicado ou
um sentido, ela propõe em seguida uma alternativa semântica (بديل معنوي و دلالي) qualitativamente
inferior, para retomar de novo e desconstruir um outro predicado, e assim por diante,...
O Ocidente cristão passou, em questão de alguns séculos, de uma concepção "teísta" de
Deus (ألوهية و ربوبية) como criador de todas as coisas e que interfere nos assuntos 
humanos (revelações, milagres, graça, teofanias,...) a um ateísmo absoluto (إلحاد مطلق).
Isto não aconteceu de um golpe. A emergência, em um primeiro momento, de uma
concepção "deísta" de Deus (ربوبية مع إنكار صفة الألوهية) (um Deus arquiteto do mundo,
mas que não interfere nos assuntos humanos: o Deus dos filósofos) no contexto de
uma modernidade não mais realizada permitiu que se qualificasse as relações
religiosas com o divino de superstições (خرافات) a se combater. Da mesma forma,
seguindo em paralelo, a emergência de uma concepção panteísta de Deus (Deus é natureza,
natureza é Deus: imanência absoluta de Espinoza) (الواحدية / وحدة الوجود / الله هو الكَون),
vem terminar de desconstruir a ideia de um Deus pessoal, moral e criador do mundo.
O século XX será aquele do ateísmo, da negação absoluta da existência de Deus.
Será da mesma forma o século da crise do mundo moderno, a crise do "sentido":
"Deus está morto! Deus permanece morto! E nós o matamos! Como nós nos consolamos,
nós assassinos entre os assassinos? Disto que o mundo possuía até então de mais santo e
de mais poderoso, nossas facas esvaziaram o sangue -- quem nos lavará deste sangue?
Com que água poderemos nos purificar? Quais cerimônias expiatórias, quais performances
sacras teremos de inventar? A grandeza deste ato não é grande demais para nós? Não
nos é necessário tornarmo-nos deuses para somente parecermos dignos dele?"
Nietzsche, Gaia a Ciência.
As quatro fases da degradação semântica por saltos qualitativos da ideia de "Deus":
1. Tradição: Concepção teísta de Deus.
2. Modernidade (fase I): Concepção deísta de Deus.
3. Modernidade (fase I): Concepção panteísta de Deus.
4. Modernidade (fase II): Deus não existe.

Nós passamos gradualmente de um Deus onisciente e onipotente a um Deus que não existe. Entre os deuses, a cada etapa, a cada salto qualitativo, o conceito é progressivamente esvaziado de sua substância semântica (محتواه المعنوي) até a sua negação.

E acontece da mesma forma para uma multiplicidade de conceitos como o do "Estado", que é passado de uma concepção monárquica tradicional incarnada por um Rei, o "Pontifex" condecorado por Deus, a um Estado-nação dessacralizado, para terminar, por sua vez, de ser diluído progressivamente na marcha pela mediação do conceito moderno de "governança".

1. Tradição: Monarquia tradicional e sagrada.
2. Modernidade (fase I): Estado moderno secularizado.
3. Modernidade (fase II): governança e diluição do Estado.
4. Modernidade (fase III): tirania do mercado/ o Estado não existe.


- A modernidade como tendência descendente do conteúdo semântico:

Dito de outro modo, a modernidade se alimenta e vampiriza sua anterioridade em termos de sentidos, de conceitos e de ideias. Ela a esvazia gradualmente de sua substância ao representá-la de maneira recomposta e de uma forma diminuída (ersatz) como novidade.

São seus "Conatus" [5], seus movimentos mais profundos. É por isso que ela é um desvio de sentido através de um processo em que o conteúdo semântico (المضمون و المحتوى المعنوي و الدلالي) marginal é sempre decrescente. Pode-se falar a priori de uma "tendência descendente do conteúdo semântico" (الميل إلى الانخفاض للبعد المعنوي و الدلالي للمفاهيم) com o "terminus": o niilismo (العدمية) pós-moderno. Não podendo produzir um conteúdo positivo, a modernidade se desdobra "se retorcendo sobre si mesma, segundo uma série de posturas e imposturas, de pantomimas e de mímicas indefinidamente propostas" [6].

No entanto, na fase extensiva (في مرحلتها التوسعية), a modernidade se inscreve em um impulso com uma aparência emancipatória (دفعة تحريرية في الظاهر) e com um vitalismo que será absurdo de negar. Sua ontogênese (نشأتها) toma historicamente a forma de rupturas revolucionárias se pretendendo emancipatórias com uma tradição em putrefação (في تعفن) (revolução científica: Copérnico, Galileu/ Política: 1789,.../ artística: quattrocento/ religiosas: a reforma, o anti-clericalismo,...). A glória do surgimento primeiro da modernidade procede, na verdade, do prestígio do objeto ultrapassado: da tradição, mesmo que morredoura.

« استمدت الحداثة مجدها الأولي من عظمت الشيء المتجاوز، ألا و هو الأصالة حتى و إن كانت في مرحلتها المنحطة آنذاك ».

Mas quanto mais a modernidade se distancia desse passado prestigioso, mais o ultrapassamento
proposto perde seu conteúdo revolucionário, e parece mais e mais brando, desprovido de interesse
maior.
Isto explica em parte a apatia (اللامبالاة) e a astenia (الوهن) da modernidade terminal em que
predomina sua fase intensiva, ou depois de ter liquidado os resíduos de sua
anterioridade (ما قبلها), a modernidade começa uma fase de autofagia (الالتهام الذاتي)
epistemológica e semântica: desconstrução do Estado moderno (الدولة المعاصرة)
pelo conceito de governança (الحكامة), da ciência pela epistemologia (Karl Popper,...),
da ideologia pelo mercado, do sujeito individual pelo sujeito rizomático, da nação
pelas minorias (sexuais, raciais, culturais,...), du real pelo virtual,...
  • [1] Henri Meschonnic, « Modernité Modernité ».
  • [2] F. Hadjadj, « Puisque tout est en voie de destruction ».
  • [3] Rosenberg « la tradition du nouveau ».
  • [4] Emile Durkheim
  • [5] Dans « L’éthique » de Spinoza, le « Conatus » est défini comme« la tendance/effort » que déploie un « mode / un étant » en vue de persévérer dans son être.
  • [6] Henri Meschonnic