segunda-feira, 25 de julho de 2016

Trabalho, educação e cultura

por Alberto Buela

Trabalho

Costuma-se recomendar na filosofia, assim como fizeram entre outros Heidegger, Zubiri, Bollnow e nosso Wagner de Reyba, que a primeira aproximação (aproximación) ao objeto de estudo seja através de um aperfeiçoamento (acercamiento) etimológico. Porque, como afirma Heidegger: "a linguagem começa e termina ao fazermo-nos sinais da essência de uma coisa"[1]. Assim comprovamos que o trabalho provém do verbo latino tripaliare que por sua vez provém de tripalium=três varas (palos), que era um poste ou jugo feito com três varas onde se atavam os bois e também os escravos para açoitar. Vemos como o aperfeiçoamento etimológico ao termo trabalho nos revela sua vinculação ao sofrer, a qualquer atividade que produz dor no corpo. Daqui que o verbo tripaliare significa em latim atormentar, causar dor, torturar.

Esclarecido o termo passemos agora a sua descrição fenomenológica. O trabalho, que pode ser definido como a execução de tarefas que implicam um esforço físico ou mental para a produção de algum tipo de bens ou serviços para atender as necessidades dos homens, tem duas manifestações: como opus= obra e como labor=labor. Enquanto a obra expressa o produto ou bem objetivo que produz, assim como labor expressa o produto subjetivo que logra.

Sobre a obra não há discussão, a obra está aí, ao alcance da mão e da vista, no máximo se pode discutir se esta está bem ou mal feita. O assunto se complica no trabalho como labor, pois implica uma subjetividade, a do trabalhador. Pois no labor está implicado a expressão do próprio trabalhador. Até não muito [tempo atrás] se reservava o termo de "labores" a uma matéria nos colégios de senhoritas. Creio que a matéria se denominava "manualidades e labores", onde tecido (hilado), o bordado, o tecido (tejido) e a costura constituíam sua temática. É que o trabalho como labor implica a formação profunda do homem que trabalha. Não é necessário esclarecer que o termo homem compreende tanto a mulher quanto o varão, pois ambos formam parte do gênero homem. A língua alemã possui também dois termos para designar as manifestações do trabalho: Arbeit para obra e Bildung para labor. E este último tem o sentido de formação.

E aqui é onde encontramos nós a vinculação entre o trabalho e a escola: na busca não tanto da informação, de conhecimentos, mas na busca da formação do educando.

E a isto sobretudo ajuda o trabalho em uma época tão dessacralizada como a que hoje nos toca viver, pois o sagrado desapareceu de nossa consciência habitual. E a educação nos valores morais se tornou muito difícil, tendo em conta que o que o menino vê diariamente é corrupção, crimes, assassinatos, roubos, golpes, droga, desordem, anomia etc.

Assim o trabalho é o único meio que temos em mãos para criar virtude[2], pelo menos pela repetição de atos, de nos levantarmos todos os dias cedo ainda que não gostamos. De lavarmos o rosto e nos pentearmos. A cumprir um horário. De ter que escutar o companheiro de trabalho com suas diferenças e nos acostumarmos a conviver com o outro, ainda que mais não seja por oito ou seis horas diárias. O trabalho limita e faz moderar (morigera) o capricho subjetivo, de onde nascem todas nossas arbitrariedades e nossos males.

E como a virtude se funda na repetição habitual de atos bons, o trabalho nos permite o passo inicial à virtude, que é fazer as coisas bem, corretamente, evitando o dano ao outro e ao meio ambiente.

Em nosso país temos tido o privilégio de proclamar que existe uma só classe de homem: o que trabalha. Ou outro: governar é criar trabalho. Incluso a máxima obra teórico-política que com traços próprios e originais se realizou na Argentina durante o século XX foi a Constituição do Chaco de 1951, onde em seu preâmbulo afirma: Nós o povo trabalhador... e não como as Constituições de 1853, incluso a de 1949 e a atual 1994: Nós o povo... ao típico estilo liberal, filho dos jjuristas da Revolução Francesa.

É que em uma época não tão longínqua se sustentava e se proclamou aos quatro ventos o ideal da liberação pelo trabalho e através dele, a poupança (ahorro).

Hoje, pelo contrário, o não-trabalho e o subsídio vieram substituir o ideal da liberação pelo trabalho. Esperemos que não seja para sempre e possamos retomar tão louvável ideal.

Educação

Como fizemos com o termo trabalho, observamos que educação vem do latim ducere que significa guiar, conduzir. De modo que educar consiste em poder guiar conduzir o educando ao logro de sua formação de homem como tal.

Este ideal educativo nos chega dos gregos com sua famosa paideia, que significou a formação do homem de acordo com seu autêntico ser; o da humanitas romana do Varrón e Cicerón, de educar o homem de acordo com sua verdadeira forma humana; o do mundo cristão com sua ideia de exemplariedade em todos os tratados De Magistro dos pensadores medievais que têm Cristo como mestre dos mestres e o do mundo moderno com Johann Pestalozzi e seu método.

Todo este ideal educativo se plasmou em nosso país a partir da lei 1420 pela qual a educação primária tem como objetivo a eliminação do analfabetismo e a formação no menino dos valores morais. (Ensinam-se modos maneiras, costumes. Em uma palavra, ensinam-se hábitos práticos etc.) De igual maneira a educação média tem por objetivo fortalecer a consciência de pertença histórico-política à Nação a que se pertence. (Ensinam-se valores cidadãos e pátrios. Em uma palavra hábitos socio-políticos)

E finalmente a educação superior que tem por objetivo entregar um método de estudo sistemático e reconhecido, onde os logros dos níveis prévios podem se expressar e se detectem as carências. Todo este ideal educativo se questionou a partir do último quarto do século XX quando massivamente a escola deixou seus ideais de formação para se limitar, no melhor dos casos, a ser uma simples transmissora de conhecimentos.

A escola, e há que recordar mais uma vez, como seu nome indica é e deve ser antes que nada o lugar do ócio. O termo vem do latino schola, o que por sua vez vem do grego (scholé, N.A) que significa ócio. Antes que qualquer coisa, a escola é o lugar do ócio. Se se quer, o lugar onde não se faz nada. Nada de útil, nada que não tenha seu fim em si mesmo. Nada em vista de outra coisa que não seja a formação do próprio educando. O caráter de útil, a utilidade, vem depois da escola e é em geral uma preocupação dos pais. Uma vez que se determinou a escola se verá se seus ensinos são úteis. Mas a escola não é outra coisa que o lugar para aprender no ócio. É o desfrutar jogando na aprendizagem, uma aprendizagem que vale por si mesmo e não em vista de outra coisa. Este aprender é por nada. Tem um fim em si mesmo que é o acesso ao saber e à sabedoria.

Faz 2500 anos Platão na Carta VII nos legou um ensino perdurável de como nos aproximarmo-nos do saber e da sabedoria: primeiro através do nome, depois buscando a definição, em terceiro lugar a imagem representada para chegar por último ao conhecimento mesmo. E para que se entenda põe o exemplo do círculo. Em primeiro lugar temos um nome chamado círculo, depois buscamos a definição composta de nomes e predicados: aquele cujos extremos distam todos igual do centro. Em terceiro lugar a imagem como representação sensível, cópia imperfeita e não permanente exemplificada por círculos e rodas. Para chegar finalmente ao conhecimento mesmo, tudo o que "depois de uma longa convivência com o problema e depois de ter ganhado intimidade com ele, de repente, como a luz que salta da faísca, surge a verdade na alma[3].

Cultura

Cada vez que escutamos falar de cultura ou de gente culta, associamos a ideia com a gente que sabe muito, que tem títulos, que é lida, como diziam nossos pais, longe e há tempo. É por isso que fez fama, apesar de sua demonização política, a frase de Goebbels: Cada vez que me falam de cultura levo a mão ao meu revólver. Porque sintetiza melhor que nada, em um brevíssimo juízo, o rechaço do homem comum, do homem de classes mais baixas (pueblo llano), ao monopólio da cultura que desde a época do Iluminismo para cá possuem e exercem os ilustrados e suas academias.

Cultivo

Por outro lado, para nós cultura é o homem se manifestando. É tudo aquilo que ele faz sobre a natureza para que esta lhe outorgue o que de seu e espontaneamente não lhe dá. É por isso que o fundamento último do que é cultura, como seu nome indica, é o cultivo.

Cultura é tanto a obra do escultor sobre a pedra amorfa quanto a obra do torneiro sobre o ferro bruto ou como a da mãe sobre a manualidade do menino, quando lhe ensina tomar o talher.

Vemos de início não mais, como esta concepção é diametralmente oposta a essa noção livresca e acadêmica que mencionamos no começo.

O termo cultura provém do verbo latino colo/cultum que significa cultivar.

Para o pai dos poetas latinos, Virgílio, a cultura está vinculada no genis loci (o nascido da terra em um lugar determinado) e ele lhe outorgava três traços fundamentais: clima, solo e paisagem.

Caracterizado assim o genius loci de um povo, este podia compartilhar com outros o clima e a paisagem, mas não o solo. Assim como nós os argentinos compartilhamos o clima e a paisagem com nossos vizinhos, mas não compartilhamos o solo. E isso não apenas porque é que neste último se assenta o Estado-Nação, mas da perspectiva de Virgílio o solo é para ser cultivado pelo povo[,] sobre ele assenta para conservar sua própria vida e produzir sua própria cultura.

Enraizamento

Mas para que um cultivo frutifique, este deve deixar boas raízes, profundas e vigorosas que deem seiva ao plantado. Toda cultura genuína exige um enraizamento (arraigo) como o exige toda planta para crescer vigorosa e forte, e neste sentido recordemos aqui de simone Weil, a mais original filósofa do século XX, quando em seu livro L'Enracinement nos diz: o reconhecimento da humanidade do outro, este compromisso com o outro, só se faz efetivo se há "raízes", sentimento de coesão que enraiza as pessoas a uma comunidade"[4]. A filósofa deu um passo além, pois, passou do mero deixar raízes ao enraizamento que sempre indica uma pertença a uma comunidade em um lugar determinado. O enraizamento, diferente da terra natal que é o pedaço de terra natal, abarca a totalidade das referências à vida que nos são familiares e habituais. O enraizamento genuíno se expressa em um ethos nacional.
Fruto

Logo de ter arado, rastreado, semeado, regado e esperado o amadurecer, aparece o melhor que dá o solo: o fruto, que quando é acabado, quando está maduro, quer dizer perfeito, dizemos que o fruto expressa plenamente o labor e então nos gosta.
Sabor

E aqui aparece um desses paradoxos da linguagem que nos deixam pensando sobre o intrincado emparelhamento entre as palavras e as coisas Nós ainda usamos para expressar o gosto ou o prazer que nos produz um fruto ou uma comida uma velha expressão em castelhano: o fruto nos "sabe bem". E saber provém do latim sapio, e sapio significa sabor. De modo tal que podemos concluir que o homem culto não é aquele que sabe muitas coisas, senão o que saboreia as coisas da vida.

Sapiente

Existe para expressar este saber um termo que é o de sapiente, que nos indica, não só o homem sábio, mas aquele que une a si mesmo sabedoria mais experiência pelo conhecimento de suas raízes e sua pertença ao meio[5]. Os antigos gregos tinham uma palavra para expressar este conceito: (phrónesis)

Vemos, então, como a cultura não é algo externo, mas que é um fazer-se e um manifestar-se da coisa mesma (uno mismo). Por outro lado a cultura, para nós argentinos, tem que se americanizar, mas isto não se entende se se concebe a cultura como algo externo. Como uma simples imitação do que vem de fora, do estrangeiro.

Não há que esquecer que por detrás de toda cultura autêntica está sempre o solo. Que como dizia nosso mestre e amigo o filósofo Rodolfo Kusch: "Ele simboliza a margem de enraizamento que toda cultura deve ter. É por isso que se pertence a uma cultura e se recorre a ela nos momentos críticos para enraizar-se e sentir que está com uma parte de seu ser preso ao solo"[6].

Cultura e Dialética

É sabido desde Hegel para cá que o conceito é "o que existe fazendo-se", que para ele, encontra sua expressão acabada na dialética, que tem três momentos: o suprimir, o conservar e o superar. E não a vulgar expressão de tese, antítese e síntese a que não têm se acostumado os manuais. Temos visto até agora como a cultura põe fim, faz cessar a insondável completude (oquedad) da natureza primitiva com o cultivo, a pedra ou o campo bruto, por exemplo, e em um segundo momento conserva e retém para si o sabor e o saber de seus frutos, vgr.: as obras de arte. Falta ainda descrever o terceiro dos momentos desta Aufhebung ou dialética[7].

Se bem podemos, em uma versão sociológica, entender a cultura como o homem se manifestando, "a cultura, afirmamos em um velho trabalho, não é só a expressão do homem se manifestando, mas que também envolve a transformação do homem através de sua própria manifestação"[8].

O homem não só se expressa através de suas obras, mas que suas obras, finalmente, o transformam ele mesmo. Assim na medida em que passa o tempo o campesinato se mimetiza com seu meio, o obreiro com seu trabalho, o artista com sua obra.

Esta é a razão última, em nossa opinião, pela qual o trabalho deve ser expressão da pessoa humana, porque do contrário o trabalhador perde seu ser nas coisas. O trabalho devém trabalho alienado. E é por isso, por um problema eminentemente cultural, que os governos devem privilegiar e defender como primeira meta e objetivo: o trabalho digno.

Esta imbricação entre o homem e seus produtos onde em um primeiro momento aquele quita o que sobra da pedra dura ou o ferro amorfo para dar-lhe a forma preconcebida ou se se quer, para desocultar a forma, e, em um segundo momento se goza em seu produto, para, finalmente, ser transformado, ele mesmo, como consequência desse deleite, desse sabor que é, como vimos, um saber. Esse saber gozado, experimentado, é o que cria a cultura genuína.

Assim a sequência cultura, cultivo, enraizamento, fruto, sabor, sapiência e cultura descreve esse círculo hermenêutico da ideia de cultura.

Círculo que se alimenta dialeticamente neste fazer-se permanente que é a vida, onde compreendemos o mais evidente quando chegamos a conjecturar o mais profundo: que o ser é o que é, mais o que pode ser.

Resumindo, vimos como o trabalho gera virtude, pelo menos mundana ou não transcendente, que se relaciona com a educação enquanto ambas atividades buscam a formação do homem em seu ser, para que este possa plasmar em sua vida uma cultura genuína, isto é, vinculada a seu enraizamento.

NOTAS

[1] Heidegger, Martín: Poéticamente habita el hombre, Rosario, Ed. E.L.V., 1980, p. 20.-

[2] Outro grande iniciador laico, em algumas virtudes, é o esporte.

[3] Platão: Carta VII, 341 c4. Também em Banquete 210e 

[4] Weil, Simone: Echar Raíces, Barcelona, Trotta, 1996, p. 123.-

[5] Buela, Alberto: Traducción y comentario del Protréptico de Aristóteles, Bs.As., Ed. Cultura et labor, 1984, pp. 9 y 21. "Temos optado por traduzir phronimós por sapiente e phrónesis por sapiência, por dois motivos. Primeiro porque nossa menosprezada língua castelhana é a única das línguas modernas que, sem forçar, assim o permite. E, segundo, porque dado que a noção de phrónesis implica a identidade entre o conhecimento teórico e a conduta prática, o traduzi-la por "sabedoria" a seca, tal como se fez habitualmente, é mutilar parte da noção, tendo em conta que a sabedoria implica antes de nada um conhecimento teórico".

[6] Kusch, Rodolfo: Geocultura del hombre americano, Bs.As. Ed. F.G.C., 1976, p.74.

[7] Buela, Alberto: Hegel: Derecho, moral y Estado, Bs.As. Ed. Cultura et Labor- Depalma, 1985, p. 61 "Em uma sucinta aproximação podemos dizer que Hegel expressa o conceito de dialética através do termo alemão Aufhebung ou Aufheben sein, que significa tanto suprimir, conservar como superar. A palavra tem em alemão um duplo sentido: significa tanto a ideia de conservar, manter como ao mesmo tempo a de cessar, pôr fim. Claro está que estes dois sentidos implicam um terceiro que é o resultado da interação de ambos, que é o de superar ou elevar. Daí que a fórmula comum e escolástica para explicar a dialética é a de: negação da negação".

[8] Buela, Alberto: Aportes al pensamiento nacional, Bs.As., Ed. Cultura et labor, 1987, p.44.- 


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