sábado, 6 de junho de 2015

Tantra, Artes Marciais e a Metafísica da Dor

por Craig Williams

"A dor é uma das chaves para desbloquear o ser mais íntimo tão bem como o mundo", escreveu Ernst Junger. "Onde quer quer se alcance os pontos onde o homem prova a si mesmo ser igual ou superior à dor, ganha-se acesso às fontes deste poder e o segredo oculto por trás de seu domínio. Conte-me sua relação com a dor, e eu te direi quem és!"

A sensação da dor é talvez a experiência humana mais preocupante e fundamentalmente desconfortável. Uma grande força equalizadora, a dor espalha sua influência para além de todas as fronteiras de raça, gênero, idade e condição sócio-econômica. Como humanos e como uma sociedade nós tememos a sensação da dor e buscamos suprimir e limitar sua voz a todo custo, independentemente do resultado em longo prazo. Assim a voz da dor frequentemente transmite grandes ensinamentos e lições esotéricas se aprendermos a ouvir, sintonizando nossos ouvidos para longe da mente egóica e da direção do "coração" ou da Alma, um tipo de cárdio-sonografia que pode guiar nossas vidas de modos extremamente transformador e misterioso. O respeito pela dor é tido em grande consideração em práticas de artes marciais e tantra, duas sistêmicas visões-de-mundo que buscam explorar e refinar o corpo físico como um campo de transformação, manifestação e auto-realização (Self-Realization: realização do Si, em sentido espiritual, e não "auto-realização" no sentido mundano, fantasioso ou egóico. N. do B.).

A voz da dor funciona como um poderoso catalisador para o crescimento e para a transformação juntamente dos profundos sistemas de artes marciais/tantra, expressando-se no terreno físico e psicológico do corpóreo, "paisagem (landscape: panorama, vista. N. do B.) do corpo". Nesses sistemas a dor pode ser criativa ou destrutiva, um fogo alquímico que pode talhar e queimar as ilusões egóicas que agem como obstáculos para nossa maturação e crescimento como lutadores e como seres auto-realizados. Bruce Lee frequentemente discutiria essa importante ideia em suas complexas revelações na luta e em seu paradigma geral para o auto-desenvolvimento. Um simples e poderoso exemplo disso é a discussão de Bruce Lee sobre as armas de luta e a "posição de luta". Nas exposições de Lee em seu sistema de Jeet Kun Do ele menciona que as armas de luta servem a um propósito duplo:

Destruir o oponente na sua frente - aniquilação de coisas que permanecem no caminho da paz, da justiça e da humanidade... e destruir nossos próprios impulsos causados pelos instintos da auto-preservação. Destruir qualquer coisa que atormenta sua mente, não machucar qualquer um, mas superar sua própria cobiça, sua raiva e tolice... Socos e chutes são armas para matar o ego.

Esta descrição de "armas de luta" contém poderosas metáforas para uma luta muito maior que um básico encontro pugilístico; isso descreve o campo de batalha da mente e do corpo assim que buscamos perder a segurança do ego em nossa visão da Alma. Estes são os ideais exatos do tantrika dessintonizando-se da mente e do corpo ao buscar escapar ou transcender o corpóreo; o corpo em si se torna uma arma mágica para a auto-realização, uma arma contra a fortaleza do ego condicionado e suas fantasias futurísticas escapistas; um instrumento que é bem sintonizado por um cultivo sistemático de práticas esotéricas. Bruce Lee também discutiu a ideia da "posição" como fundamento de seu sistema de Jeet June Do e descreveu o "posicionamento fundamental" da posição como:

Uma simples, mas efetiva organização de si mentalmente e fisicamente... facilidade, conforto, e o corpo sente durante a manutenção da "posição do espírito"... simplicidade: movimento com nenhuma tensão; ser neutro, não tem comprometimento em direção ou esforço.
Bruce Lee (E) e Yukio Mishima (D)

Uma vez mais a descrição de Lee da "posição de luta" contém metáforas para uma visão ainda maior e ecoa muito dos ideais práticos da física tântrica. A posição que assumimos em nossas batalhas diárias determinarão o resultado antes da luta que ainda não começou. No tantra o corpo é cultivado a um estado de harmonia mental e física sem engajamento fanático em míopes paradigmas fundamentalistas: "movimento sem tensão". O físico tântrico está sempre em guarda e sempre pronto a assumir uma posição natural para administrar a batalha diária da mente condicionada e na guerra contra a pedra-de-toque fundamentalista. Como Lee afirmou, "Enquanto os socos estão vindo, mantenha seus olhos abertos cada minuto. Os socos não esperarão por você. Eles acertarão inesperadamente e, a menor que você seja bem treinado o bastante para acertá-los, eles serão difíceis de parar". Então tentamos impiedosamente estar prontos e em um estado relaxado confrontar os golpes diários da mente condicionada e da fortaleza das forças egóicas. Nosso corpo e nossa mente constantemente buscarão apoiar as ilusões do ego em uma tentativa de nos manter a salvos, em nossas zonas de conforto. No entanto, isso nos impede de crescer e realizar nosso verdadeiro Si (Self, N. do B.) e de manifestar nossa Visão da Alma. Isto foi apropriadamente descrito em Sun and Steel pelo gnóstico controverso Yukio Mishima:

Eu chamo atenção aqui para um fato: que tudo... procedeu da minha 'mente'. Eu acredito que assim como o treinamento físico transformará os músculos supostamente involuntários em voluntários, do mesmo modo uma transformação similar pode ser alcançada através de uma tendência inevitável que pode-se também chamar de lei natural, são inclinados ao descuido no automatismo, mas eu descobri com a experiência que um grande fluxo pode ser defletido ao cavar um pequeno canal.

Esse é outro exemplo da qualidade que nossos espíritos e corpos têm em comum: que a tendência compartilhada pelo corpo e pela mente instantaneamente criam seu próprio pequeno universo, sua própria 'falsa ordem', onde quer que, em um tempo particular, são tomados pelo controle de alguma ideia particular.... Essa função do corpo e da mente em criar por um momento sua própria miniatura de universo é, na verdade, nada mais que uma ilusão: então o senso fugaz de felicidade na vida humana pertence precisamente a esta 'falsa ordem'. É um tipo de função protetora da vida em face do caos em torno dela, e relembra o modo como um ouriço rola como uma bola. A possibilidade então apresentou-se a demolição de um tipo de 'falsa ordem' e cria outra no lugar, de retornar a si mesmo essa função obstinada e resetando-a em uma direção melhor acordada com seus próprios fins".

As revelações poéticas de Mishima ecoam muito dos profundos ideais do tantra. Mais que abandonar a mente e o corpo, o tântrico busca usar esses membros egóicos como armas para a transformação alquímica e uma verdadeira posição do elan vital: abraçando o mundo ao invés de buscar escapar dele, abraçando a batalha diária com o ego e suas ilusões condicionadas ao invés de buscar fugir, abraçar a batalha diária como uma oportunidade para a auto-realização! Isso não é mera postura retórica. Atualmente é uma descrição convincente do que é referido em Left Hand Tantra como o "caminho impiedoso". A aceitação diária dos desafios da carne e as miragens da mente é de fato uma batalha, que inevitavelmente termina em morte. Assim como o lutador busca ser capaz de manter sua posição num instante sempre pronto para os inesperados e imprevisíveis golpes da vida, o tântrico busca assumir uma posição na qual está sempre pronto para ver a luta interior como um raro e efêmero presente e se esforça em ser capaz de assumir essa posição no evento inesperado e imprevisível: a morte. Como disse Mishima:

Se a solenidade e a dignidade do corpo se elevam sozinhas do elemento da mortalidade que espreita dentro dele, então a estrada que leva à morte, eu conclui, deve ter algum caminho privado que conecta com a dor, com o sofrimento, e a contínua consciência que é prova da vida. E eu não poderia deixar de sentir que se houvessem alguns incidentes nos quais dores de morte violentas e músculos bem desenvolvidos fossem habilmente combinados, apenas ocorreria em resposta às demandas estéticas do destino. Claro que o destino não tem o costume de levar uma orelha em considerações estéticas.

Artes marciais e física tântricas veem a inevitável experiência da dor como portões sacros dentro da mente e do corpo que, se corajosamente e estrategicamente perpassados, podem levar o explorador em uma paisagem da Alma, a verdadeira visão da liberdade e da auto-realização. Não há escapatória para a dor. No entanto, podemos refinar nossas mentes e nossos corpos a ver o encontro com a dor como uma oportunidade para áreas expostas à revelação que precisam mudar, evoluir, amadurecer ou morrer. Não podemos ser preguiçosos ou adiar essa perseguição como se não tivéssemos garantia do tempo alocado a nós no campo de batalha. Não há troféus ou premiações nesse campo de batalha, apenas cicatrizes que servem como lembranças da nossa dedicação e comprometimento no caminho e nas lições transmitidas para nós por nossas respectivas linhagens e professores. É o último presente que é somente premiado aos poucos e verdadeiramente corajosos que caminharão o caminho impiedoso e aprenderão a ouvir a voz da dor. Qual é sua posição? Está pronto para ouvir?

via peopleofshambhala

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