quarta-feira, 3 de junho de 2015

Louis Ferdinand Céline: uma febre obsidional

por Manuel Fernández Espinosa, 27 de maio de 2015

Louis Ferdinand Auguste Destouches, mais conhecido como Louis Ferdinand Céline, nasceu em um dia como hoje, em 27 de maio de 1894, em Courbevoie. O sangue bretão que corria em suas veias teve que lhe dar esse toque melancólico, tão céltico, que às vezes se soma em sua obra. Em seu "Carnet do couraceiro Destouches" que, até certo ponto, constitui um caderno introspectivo, chega a se perguntar: "sou poético? Não. Não creio; só um fundo de tristeza há no fundo de mim mesmo, e se não tenho o valor de afugentá-lo com uma ocupação qualquer adquire em seguida grandes proporções".

Toda sua obra é um testemunho vital de alguém que nunca viu a si mesmo como um herói, mas como um sobrevivente. O "Viagem ao Fim da Noite" (sua novela mais famosa) nos pinta suas peripécias através das de seu alter ego, o protagonista do "Viagem...", Ferdinand Bardamu. Novela de aprendizagem, com um forte caráter picaresco, Céline lançou com ela ao mundo seu grito de rebelião. Uma rebelião com causa, a do indivíduo inteligente que não pode ajudar a salvar a entrada na dinâmica da sociedade hipócrita que o absorve, mas que resiste e que descobre que os valores estanhados, por muito que brilhem, não correspondem a nada autêntico. Céline sempre teve a ideia, alguns diriam que paranóica, de que foi o "Viagem..." o que nunca o perdoaram: "Se me procuram é pelo 'Viagem...' Uivo sob machado! É uma conta pendente entre eu e 'ELES'! no mais profundo... que não se pode contar... Estamos em perigo de Mística! Que coisa!" - escrevia em um prólogo retrospectivo para esta novela.

Os panfletos antissemitas de Céline lhe trariam nojentas consequências depois da Segunda Guerra Mundial. Pouco valeu alegar que seus livros foram proibidos na Alemanha hitlerista. A sorte estava lançada para ele: considerado como um colaborador, conforme os aliados iam lhe comendo o terreno dos alemães, Céline empreendeu uma fuga pela Europa central (poderíamos dizer que foi um prolongamento da viagem ao fim da noite, da noite que se alongava na Europa, da noite que persiste ainda hoje); com sua fuga escapava dos linchamentos que perpetravam na França os carrascos da mitificada "resistência", brutais represálias que ninguém condenou, que foram perpetradas contra aqueles que eram tachados de colaboradores. Certamente, a situação de Céline foi se agravando progressivamente conforme o Reich sucumbia e, por fim, pôde se refugiar na Dinamarca, onde foi preso para julgamento e, se os dinamarqueses tivessem-no entregado, Céline teria sido executado como tantos outros franceses; mas, isso sim, sem saber de fato nem a metade que outros que, para mais escárnio, esnobavam-se de terem combatido os nazis.

É o caso de Jean Paul Sartre ou Simone de Beavoir. Sartre, o guru do existencialismo e da "divina gauche", viveu pacificamente, até mesmo com êxito, enquanto os alemães acampavam em suas costas em Paris: as autoridades alemãs de ocupação permitiram a publicação de algumas obras de teatro do estrábico: o livro de Gilber Joseph, "Uma ocupação tão doce: Simone de Beavoir e Jean Paul Sartre, 1940-1944" revelou que Sartre jamais entrou em conflito com os nazis, por muito que depois - depois da vitória aliada - adotaria a pose de irredutível resistente intelectual. E sua companheira, a Beavoir, diva do feminismo, não teve nenhuma indigestão em colaborar com as emissoras do governo colaborador de Vichy. Não obstante, ninguém os torturou. Mas o Céline, ele sim: não fez tanto como estes dois que gozam de um prestígio imerecido, mas todos se opuseram a ele.

No "Viagem..." já havia indícios de uma suposta paranoia celiniana, mas a hostilidade que deverá sofrer depois da vitória aliada incrementa essa sensação de isolamento até mostrar uma febre obsidional como encontraremos em poucos casos da literatura. Seu estilo sincopado, seus pontos suspensivos, seus pitacos, suas crudelíssimas afirmações sobre homens e a vida imprimem em sua obra uma inconfundível nota de identidade. Céline soube transportar a vivência da linguagem oral para a escrita, podemos ler por aí; mas não é o único que pretendeu (talvez) Céline: nesses lapsos se entrevia o silêncio, o silêncio que sempre será uma constante tentação para um espírito orgulhoso que não se curva para qualquer coisa. Um orgulho de resistente que se reserva a totalidade do juízo , que lhe merecem as pantomimas e as grandiloquentes palavras dos valetes bem vestidos, bem reafirmados e pensantes; o orgulho, enfim, de quem não aceita ser presa de seus inimigos (a humanidade toda, descontando os mais próximos), que ri às gargalhadas de todas as mentiras do seu tempo (que também são as do nosso), de quem não pactua com as ficções que a maioria compartilha. Pontos suspensos... Não há palavras para expressar a repugnância que provocam tantas coisas como nos circundam: podemos ser barulhentos e loquazes, mas sempre (...) poderíamos ter dito muito mais (...)

Céline soube cultivar sua imagem iconoclasta e irredutível, mas o traço de toda sua nobreza residiu em que não o fez por cálculo ganancioso, mas por seu inexpugnável orgulho, o de que se sabe inocente e não dá gana de ser imolado nem se prestar a que o machuquem, com a convicção de ser um homem só, acompanhado de sua mulher, de seus mascotes e de poucos amigos, que não militou nunca em partido algum, que só queria se dedicar a escrever e que encontrou em suas adversidades a matéria para criar uma obra colossal que o mesmo faria chorar que rir e que, até seu mesmo adversário, Sartre, mimado pelo aparato cultural, teve que reconhecê-la como monumento imperecível da língua francesa.

Querer ser si mesmo se paga muito caro. Bem o soube Céline. Por isso, lê-lo é sempre um exercício de rebelião muito proveitoso que ajuda a ser si mesmo e purga muitas falsidades que nos querem impor.

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