Por Claudio Mutti
A "contra-iniciação" e seus agentes.
A melhor maneira de esclarecer o conceito guenoniano de "contra-iniciação" é apoiando-nos nos trechos mais significativos que o próprio René Guénon dedicou a este assunto:
"O termo 'contra-iniciação' -- lemos no Reino da Quantidade -- é o que melhor convém para designar aquilo a que se referem, em conjunto e em diferentes níveis (...) os agentes humanos por cujo intermédio se opera a ação anti-tradicional (...). A 'contra-iniciação' (...) não é uma mera falsificação completamente ilusória, mas algo muito real dentro de sua ordem, como demonstra perfeitamente a ação que exerce efetivamente; pelo menos não é uma falsificação para além do sentido em que imita necessariamente a iniciação a fim de produzir uma sombra invertida dela, apesar de que sua verdadeira intenção não é imitá-la, mas opor-se a ela. Por outro lado, uma tal pretensão é forçosamente vã, já que o âmbito metafísico e espiritual lhe está vedado, precisamente por se encontrar para além de todas as oposições; pode apenas limitar-se a ignorá-lo ou então a negá-lo, e em nenhum caso pode ir para além do "mundo intermediário", quer dizer, do âmbito psíquico, que é por todos os conceitos o campo de influência privilegiado de "Satã" na ordem humana e inclusive no cósmico; mas não por isso desaparece a intenção nem o compromisso que implica seguir a trajetória inversa da iniciação. (...) Na medida em que ela não pode conduzir os seres humanos até os estados "supra-humanos", como a iniciação [o pode], nem limitar-se ao mero âmbito do humano, a "contra-iniciação" os arrasta infalivelmente em direção ao "infra-humano", sendo aqui precisamente onde se localiza o que lhe resta de poder efetivo."[1]
Em relação a este assunto, revestem-se de uma importância particular as cartas que René Guénon escreveu para Vasile Lovinescu (1905-1984) desde 9 de julho de 1934 até 28 de janeiro de 1940[2], cartas que pode-se recuperar em Bucarest. Não obstante, ainda não foram encontradas as cartas enviadas por Lovinescu para Guénon, de modo que os fatos a que Guénon se refere não são sempre perfeitamente compreensíveis; mas, apesar disso, este epistolário guenoniano se torna muito valioso, pois em certa medida nos ilustra a modalidade operativa das forças contra-iniciáticas e nos introduz em situações históricas que parecem demonstrar as seguintes declarações em Reino da Quantidade: "Pode-se salientar que a 'contra-iniciação' se dedica a introduzir seus agentes nas organizações 'pseudo-iniciáticas' às quais dessa forma 'inspiram', atrás de seus membros ordinários e, inclusive, com bastante frequência, de seus chefes aparentes, (...) das organizações 'pseudo-iniciáticas' é sem dúvida alguma o mais chamado a reter a atenção da 'contra-iniciação', convertendo-se em objeto idôneo de seus esforços, pelo próprio fato de que a obra que se propõe seja sobretudo anti-tradicional."[3]
Na mencionada correspondência com Lovinescu estão explicitamente identificados como agentes da contra-iniciação algumas personagens que desempenharam diferentes papéis sobre a cena histórica do século XX.
Em uma carta datada de 24 de fevereiro de 1936, por exemplo, são citados alguns como o Aga Khan III (1877-1957), que no ano seguinte se tornou presidente da Assembleia Geral da Sociedade das Nações; Henry Deterding (1866-1939), o 'Napoleão do petróleo', presidente da Royal Dutch - Shell Oil Company, o que lhe valeu o título de Sir por ter contribuído com a vitória da Entente graças ao fornecimento de combustível; David Lloyd George (1863-1945), patrocinador da intervenção britânica na Primeira Guerra Mundial e responsável (com Wilson, Clemenceau e Nitti) do ordenamento do mundo pós-guerra; também Sir Phillip Sasson (1888-1939), outro político britânico e membro de uma família judia notável, cuja estirpe Sasson havia se unido a um ramo dos Rothschild; o primeiro ministro grego Eleftherios Venizelos (1864-1936), que morreu em Paris no mesmo ano de 1936; o primeiro ministro francês Georges Benjamin Clemenceau (1841-1929), inimigo feroz da Alemanha, que foi um dos artífices do Tratado de Versalhes; Cornélio Herz (1845-1898), empresário franco-americano de origem judia e protagonista do escândalo do Panamá; Edouard Herriot (1872-1957), líder do Partido Radical Francês, três vezes presidente do conselho na Terceira República, candidato ao Prêmio Nobel da Paz em 1929; o Príncipe Alberto I de Mônaco (1848-1922), e do qual Guénon ressalta sua conexão com Basil Zaharoff (1849-1936).
E é justamente Basil Zaharoff, melhor dizendo, Sir Basil Zaharoff, o expoente da contra-iniciação que com maior frequência é citado, e por muito tempo, na mencionada correspondência de vários anos mantida entre Guénon e Lovinescu.
1913: O fracasso da reunião de Guénon com Zaharoff
No capítulo do Teosofismo, intitulado "A questão dos Mahatmas" -- onde os Mahatmas são os presentes "Mestres" com os quais se relaciona a Sociedade Teosófica -- Guénon nos conta um episódio de 1913 que o envolveu pessoalmente, quando foi lhe proposto pôr-se em contato com um destes "Mestres" por conta de assunto que pouco tinha a ver com o Teosofismo: "como quisera que isso não nos comprometia, aceitamos com gosto, ainda que sem criar ilusões a respeito dos resultados. No dia fixado para o encontro, que não se realizaria 'astralmente', apenas chegou um membro influente da Sociedade Teosófica, procedente de Londres, onde se encontraria o 'Mestre', e alegou que este não pôde acompanhá-lo em viagem, e ofereceu um pretexto qualquer para desculpar seu descaso. Desde então não se tratou mais disso, apenas sabemos que a correspondência dirigida ao 'Mestre' era interceptada por Madame Besant. Certamente, isso não prova que o 'Mestre não existisse, assim porque nos cuidaremos muito bem de deduzir a mínima conclusão deste fato."[4]
Em sua biografia sobre René Guénon, Paul Chacornac (1884-1964) recorda deste episódio e escreve o seguinte: 'Os diversos protagonistas desta história desapareceram e não existe, pois, nenhum inconveniente em revelar que o assunto em questão estava ligado à constituição da Albânia como Estado independente e a candidatura do Príncipe de Wied ao trono do novo Estado, candidatura a qual se tratava de tornar favoráveis as organizações sufistas no momento muito poderosas no país."[5]. Essa anedota -- observa Chacornac -- mostra que nessa época havia pessoas que consideravam que Guénon tinha possibilidades de contato com "ambientes geralmente fechados aos ocidentais e quiçá suficiente autoridade para que uma opinião que viesse dele tivesse oportunidades de ser tomada a sério."[6]
Posteriormente, uma luz é lançada sobre este momento graças a Jean Reyor, alias Marcel Clavelle (1905-1988), em um manuscrito privado de 1963 [7], o qual mais tarde Marie-France James intitulou de Documento Confidencial Inédito [8]: "O famoso 'Mestre R.' -- escreve Reyor -- que os teosofistas consideram como a reencarnação do Conde de Saint-Germain e que deveria se encontrar com Guénon a propósito da candidatura do príncipe de Wied para o trono da Albânia, não era outro que sir Basil Zaharoff, o riquíssimo 'fabricante de armas' e agente importante do 'Intelligence Service', amigo íntimo da rainha Maria da Romênia, tia do príncipe de Wied. O 'membro' influente da Sociedade Teosófica ao qual se alude na mesma passagem era Charles Blech, no momento presidente da Seção francesa da tal Sociedade. Alguns anos mais tarde se ofereceria a Guénon uma soma, muito atraente para a época, se ele consentia em não publicar seu livro sobre o Teosofismo."[9]
Que Basil Zaharoff fosse presenteado pelos teósofos como uma reencarnação do Conde de Saint-Germain afirma implicitamente o próprio Guénon: "Acabo de olhar um retrato de Bacon (...) -- escreve a Lovinescu com data de 25 de novembro de 1935 -- que os teosofistas publicaram intencionalmente, em relação precisamente com a L.C.C. (Liberal Catholic Church); parece, muito curiosamente, com a de sir B.Z.! -- Há certamente por baixo de tudo isso algumas manobras bem tenebrosas, e você não se engana ao considerar que essa atenção posta sobre Romênia tenha algo de inquietante..."[10]
Basil Zaharoff
Basil Zaharoff nasceu em 6 de outubro de 1849 em Mugla, entre as montanhas de Anatólia, proveniente de uma família que levava o sobrenome oficial de Zacharios ou Zacarias, e lhe puseram o nome de Basileios (Basílio). De acordo com algum de seus biógrafos, tratar-se-ia de "sobrenomes grecizados, cuja forma original teria sido Sahar ou talvez Zohar: seriam nomes hebraicos autênticos, sobretudo porque o nome de Sahar é bastante comum como sobrenome hebreu e, se a família emigrada para a Rússia começou a se chamar Zaharoff, isso equivaleria a 'Sahar' mais 'off', desinência russa que corresponde, certamente, a uma nova necessidade." [11]. A carreira de Basílio Zacarias começou em 14 de outubro de 1877, quando induziu ao governo turco a compra de uma grande quantidade de armas da companhia inglesa Nordenfeltt, graças a suas relações com um ministro competente "o qual tinha conhecido em certos círculos e em casas de jogo"[12], disse pudicamente seu biógrafo inglês Robert Neumann. Em seguida, Zaharoff conseguiu vender armas para todos os Estados em conflito: desde a Rússia e Japão até a Argentina, Chile, Bolívia e Paraguai.
Disso Ezra Pound se inspirou para o Canto XXXVIII, no qual Zaharoff aparece sob o pseudônimo Metevsky: "disse ele: os outros meninos conseguiram mais munições (...) -- Não comprem até receber as nossas -- E cruzou a fronteira -- e disse aos oponentes -- Aqueles têm mais munições. Não comprem até receber as nossas --. E Ackers (Vickers) tinha realizado muitas ganâncias e importado ouro para a Inglaterra -- Aumentando assim as importações de ouro"[13].
"Durante a guerra dos Bálcãs -- escreveu em 1912 para o diário francês 'Crapouillot' -- Zaharoff armou os dois lados. Apoiou a Grécia contra a Turquia, a Turquia contra a Sérvia e, um ano mais tarde, a Sérvia contra a Áustria."[14]
Em 1913, na época da reunião frustrada com Guénon, a estrela de Zaharoff estava no seu apogeu. Na França, o comerciante de canhões tinha conseguido o controle da Union Parisienne des Banques, historicamente associada com a indústria pesada, e tinha tomado posse do periódico "El Excelsior". Nesse mesmo ano foi premiado com a Légion d'Honneur por méritos filantrópicos.
No Canto XVIII Pound diz: "E Metevsky, 'o conhecido filantropo', - Ou, 'o conhecido financeiro, mais bem conhecido' -- Como dizia a imprensa, 'como filantropo' -- "[15].
O príncipe de Wied e a rainha da Romênia
O príncipe Wilhelm zu Wied, a quem Zaharoff tinha fornecido apoio, foi nomeado rei da Albânia em 28 de novembro de 1913 pelo Conselho de Embaixadores das Grandes Potências (Grã Bretanha, França, Itália, Alemanha, Áustria-Hungria, Rússia). Wilhelm foi um príncipe renano de confissão protestante, cuja candidatura apoiada pela Áustria-Hungria prevaleceu sobre a de Fuad de Egito, respaldado pela Itália. O rei eleito chegou a Durrés em 7 de março de 1914, mas seis meses mais tarde, em 3 de setembro de 1914, teve que voltar para a Alemanha, porque depois de sua negativa para alinhar a Albânia com o lado dos impérios centrais, Viena suspende as ajudas que permitiam o novo Estado balcânico fazer frente aos inimigos internos e externos.
Jean Reyor se equivoca quando escreve que a rainha Maria da Romênia (1875-1938) era tia do príncipe Wilhelm zu Wied, rei da Albânia. A tia deste último, ao contrário, foi a soberana anterior, Isabel da Romênia (1843-1916), que era irmã do pai de Wilhelm (que se chamava Wilhelm, como o filho). Isabel de Wied (conhecida no mundo das letras sob o pseudônimo de Carmen Sylva) tinha subido ao trono de Bucarest em 1881, quando seu marido, o príncipe Carlos de Hohenzollern-Sigmaringen, se tornou rei da Romênia com o nome de Carlos I. Por outro lado, em 1913 Maria (Maria da Saxônia-Coburgo-Gotha) não era, contudo, rainha da Romênia; ela se tornará em outubro de 1914, ao casar-se com Fernando I (1865-1927) e se manterá no cargo até 20 de julho de 1927. Posteriormente aderiu à Fe Baha'i, na qual afirmou ter descoberto o "verdadeiro espírito de Cristo, tantas vezes negado e incompreendido"[16].
Zaharoff em Bucarest em 1922
Com a rainha Maria, Zaharoff certamente teve algo que fazer em fins de 1922, quando chegou a Bucarest para conceder um empréstimo ao Estado romano. "Para ele -- escreve o biógrafo inglês mencionado -- só havia três milhões de libras esterlinas, para a outra parte, pelo contrário, eram dois bilhões de lei (...) Contemporaneamente, a companhia Vickers [A gigante indústria de armamentos controlada por Zaharoff] participa em Rescita, a maior empresa da indústria pesada na Romênia."[17].
A rainha Maria, cuja filha maior, outra Elisabeth (1894-1956), há um ano já era esposa de George II da Grécia (1890-1947), pediu a Zaharoff que interviesse a favor da família real grega, porque temia que o novo soberano também tivesse que seguir a via do exílio, como seu pai Constantino I (1868-1923).
Se alguém tinha voz na Grécia, este era Zaharoff, quem, segundo o 'Times', tinha gasto pelo menos 50 milhões de libras esterlinas para envolver a Grécia na guerra do lado da Tríplice Entente. Como Constantino I da Grécia (1868-1923) era cunhado de Kaiser, a tarefa não era fácil; mas Zaharoff tinha fundado em Atenas uma agência de notícias que, difundindo informações favoráveis à Tríplice Entente, contribuiu para a derrubada do soberano; em seguida se produziu o retorno de Eleftherios Venizelos (1864-1936) e a entrada da Grécia no conflito. Assim foi como Zaharoff mereceu ser enobrecido por Sua Majestade Britânica e se tornou o Sir Zaharoff.
Um papel similar ao desempenhado por Zaharoff em Atenas exerceu a rainha Maria em Bucarest: a Romênia, que até 1916 tinha fornecido petróleo para a Áustria e a Alemanha, entrou em guerra ao lado da Entente por decisão da nova soberana mais que pela vontade de Fernando, que, como escreveu A.L. Easterman, "é um homem tranquilo, pacífico e com um caráter significativo... não é ele, mas Maria quem governa Romênia"[18].
Bô Yin Râ
Guénon retoma o assunto de sua reunião frustrada com Zaharoff na correspondência com Vasile Lovinescu.
Na primeira metade dos anos trinta, este último escrevia em várias revistas romenas, manifestando interesse pelas tradições orientais e por algumas figuras do esoterismo. Em particular, chamou-lhe a atenção o novelista de Praga, Gustav Meyrink (1868-1932), assim como o escritor ocultista alemão Bo Yin Ra, alias Joseph Anton Schneiderfranken (1876-1943), presente enviado da denominada "Grande Loja Branca" (assim era chamada a central do teosofismo) e fundador de uma organização denominada p "Grande Oriente de Patmos".
Lovinescu chega a conhecer em 1932 o livro de René Guénon: Le Roi du Monde, traduz ao romeno e pede ao autor autorização para publicá-lo em vários capítulos em uma revista que fundaria em breve.
Em 16 de dezembro de 1934 Guénon lhe responde positivamente; não obstante, devido ao fato de que Lovinescu também projetava traduzir Bo Yin Ra, Guénon lhe pressiona para "tomar todas as precauções possíveis para que ninguém pudesse supor que ambas as coisas são solidárias seja lá em que sentido fosse". E também escreve: "Agora devo dizer que o que eu penso de Bo Yin Ra não se baseia principalmente no conteúdo de seus livros, mas conheço a organização a qual ele esteve ligado, e que, ainda tendo realmente sua sede em alguma parte da Ásia Central, é de um nível iniciático muito pouco elevado".
Em 29 de setembro de 1935, Guénon acrescenta: "Enquanto aquilo de que tinha falado de BYR, se trata efetivamente de uma organização iniciática degenerada ou desviada, sobretudo pelo predomínio de um certo lado 'mágico', mas, em caso similar, é muito raro que elementos pertencentes à 'contra-iniciação' não se aproveitem dele [esse lado mágico] para se infiltrar e exercer sua influência."
Por último, inteiramo-nos de que Bo Yin Ra esteve presente na reunião na qual também deveria ter assistido Zaharoff: "Refletindo sobre o que me foi escrito com respeito ao 'Mestre dos Bálcãs' --, escreve Guénon a Lovinescu em 11 de outubro de 1935 -- me parece cada vez mais provável que o personagem que queriam me apresentar em 1913 já era sir B.Z. Não sei já se lhe disse que naquela circunstância se tratava da constituição da Albânia como Estado independente, e que da possível intervenção, a respeito, de algumas organizações islâmicas que existiam nesse país. Agora, há outra coisa que também é muito curiosa: na data em que finalmente o personagem se fez presente era na casa de um dos membros da organização oriental da qual lhe falei com respeito a BYR; e, além disso ele (que então não era conhecido ainda por este nome) se encontrava presente neste dia! Até creio, inclusive, que esta é a única ocasião em que me encontrei com ele, a menos que o tenha encontrado outra vez na mesma época, mas não estou muito seguro disso, não tendo então qualquer razão para dedicar-lhe uma atenção particular...".
Zaharoff, o 'Meste R.', o Conde de Saint Germain
Guénon também identifica Zaharoff com o 'Mestre dos Bálcãs', sobre o qual Lovinescu tinha feito menção. Por sua vez, Jean Reyor o identifica com o "famoso 'Mestre R.', o qual os teosofistas tinham geralmente considerado como a reencarnação do Conde de Saint-Germain.
O "Mestre R." é, de fato, o 'Mestre Rákóczi", já que frequentemente os teosofistas sustentaram que o Conde de Saint-Germain pertencia a esta família da aristocracia húngara. Alguns deles identificaram-no com o príncipe Francisco II Rákóczi (1676-1735), que reinou na Transilvânia desde 1703 a 1711; outras vezes com seu filho maior, Leopoldo George (1696-1700); outros também com seu terceiro filho Joseph, marquês de São Marco (1700-1738). Annie Besant (1847-1933), que afirmou ter se encontrado com o Conde de Saint-Germain em 1896, em um de seus livros mencionou duas "encarnações": Francisco II Rákóczi e Janos Hunyadi (1406-1456).
É interessante ressaltar que essas diferentes teses foram apresentadas e discutidas em um estudo de A.J. Hamerster, publicado em partes no periódico "The Theosophist", entre 1934 e 1935, quer dizer, nos mesmos anos em que Guénon iniciava a correspondência com Lovinescu [19].
Agora, em um par de cartas de Guénon, conclui-se que Lovinescu lhe tinha falado do Conde de Saint-Germain, pondo-o em relação com Lord Rothermere, com a rainha Isabel da Romênia e com Sir Basil Zaharoff.
"Quanto às histórias do conde de Saint-Germain (...) -- escreve Guénon em 9 de novembro de 1935 -- essa identificação com Lord Rothermere era para mim completamente inesperada!"
Lord Rothermere é verossimilmente Harold Harmsworth, primeiro visconde Rothermere (1868-1940), o proprietário da Associated Newspapers Ltd., conhecido especialmente pelo desenvolvimento que ele e seu irmão Alfred deram ao Daily Mail e ao Daily Mirror.
"Pelo que se refere à rainha Elisabeth -- continua Guénon na mesma carta -- já tinha ouvido falar em outra ocasião de suas relações com coisas singulares, ainda que não tenha conservado recordações muito precisas sobre isso; já que esta história data de antes da guerra, poderia muito bem ter relação com aquilo que aludi no Teosofismo... Em todo caso, parece que há um ou vários personagens que desempenham, em certas circunstâncias, o papel de Conde de Saint-Germain; o assunto seria saber com que direito e por conta de quem...".
Em 25 de novembro, Guénon volta para o assunto e escreve: "Sua história com respeito ao conde de S-G se torna ainda mais curiosa do que eu pensava, com base no que me disse outra vez, pois confirma coisas que suspeitava há muito tempo. Não parece duvidoso que sir B.Z. seja um representante importante de um dos ramos da 'contra-iniciação'!; alguns até mesmo pensam que seria um de seus chefes; mas talvez isso seja falar demais, porque não é provável que os chefes verdadeiros desempenhem um papel que os ponha de tal modo em evidência... Perguntei-me se na verdade não era dele que se tratava na história à qual fiz alusão no Teosofismo e que, de fato, tinha relação com a constituição da Albânia como Estado independente. Teria sido também ele que tinha recebido através da rainha Elisabeth da Romênia, aparentemente até a mesma época, ou antes se tratava se outro personagem? Em todo caso, se você está seguro do que aconteceu em 1927, suas relações com A.B. já não podem pôr qualquer dúvida".
As iniciais A.B. se referem a Annie Besant. Que coisa tinha que tratar a presidente da Sociedade Teosófica com Zaharoff veremos mais adiante.
O séquito teosofista da rainha Isabel
Primeiramente, será oportuno tratar de compreender o que significa, para Guénon, ao falar sobre as relações da rainha Elisabeth, as 'coisas singulares' (ses rapports avec des choses singulières).
Sem dúvida, era uma coisa bastante notável que a rainha se declarasse simpatizante dos social-democratas e fosse favorável à forma republicana de governo: "a única racional", escreveu a soberana em seu diário [20]. Além disso, a rainha Isabel era "vidente" e afirmava receber mensagens angélicas (tinha tido íntimo contato com o 'espírito' de um não muito especificado imperador Friedrich).
Elisabeth teve como dama de honra a poetisa Elena Vacarescu (1867-1947), que, tornada colaboradora do 'Movimento Cósmico' fundado pelo cabalista e ocultista Max Theon (1848-1927), em 1916 apoiou os esforços realizados pela rainha Maria para alienar a Romênia em direção à Entente; em 1920 Vacarescu consegue uma função de certa importância na Sociedade das Nações.
Outra famosa escritora patrocinada por Elisabeth foi Fanny Seculici, alias Bucara Dumbrava (1868-1926), fundadora da loja teosofista da Romênia e tradutora de um livro de Jiddu Krishnamurti (1895-1986), e viajou à Índia para participar em um congresso da Sociedade Teosófica.
Fanny Seculici é citada por Guénon em sua carta a Lovinescu de 25 de junho de 1936, quando ele volta a mencionar, entre outras coisas, o Conde de Saint-Germain. "Por outro lado, recebi uma carta de alguém que residiu bastante tempo na Romênia e que esteve em relação com os meios teosóficos -- escreve Guénon --. Ao fazer a relação do que me conta com o que eu já sabia por você, parece que, quando da permanência de B.Z. e da senhora Besant na Transilvânia, da que você me tem falado, certa senhora Lazar, de Turda, desempenhou determinado papel; você conhece esta pessoa ou ouviu falar dela?".
É muito provável que Lovinescu tinha ouvido falar de Elena Lazar, porque esta tinha desempenhado atividades teosofistas já no período austro-húngaro na Transilvânia e mais tarde, em dezembro de 1925, participou no congresso teosofista de Adyar na Índia.
"Há também -- continua a carta de Guénon -- uma história extraordinária de uma senhorita Lia Braunstein, originária da Alemanha (possivelmente de Munique), e que se encontrava em Bucarest na época da guerra; pretendia travar contato com os 'Mestres' e especialmente com o conde de S-G; finalmente, foi tomada por um ataque de loucura furiosa em Londres, onde tinha ido para dar um concerto (era música), e foi internada e um asilo de loucos. Também é questão de uma senhorita Seculici, que foi presidente do ramo de Bucarest, e que morreu em Port-Said ao voltar de um congresso em Adyar; a história dessa morte está mesclada com algo relacionado com meu livro sobre Teosofismo, mas de uma maneira que não chego a desenvolver de maneira exata."
Na seguinte carta (é 28 de agosto de 1936) se deduz que no mesmo ano do Congresso de Adyar (e não em 1927) Zaharoff e Annie Besant tinham viajado para a Transilvânia. "Aquilo que eu lhe falei a respeito da senhora Lazar -- escreve -- aconteceu em 1925, conforme novas informações; pois parece que corresponde bem ao assunto do castelo de Hunvard (château de Huniade)".
Aquilo que Guénon chama de château de Huniade é o castelo de Hunvad (hoje Hunedoara), uma região transilvana de onde a casa dos Hunyadi tomou seu nome, casa a que pertenceram Janos Hunyadi e Matthias Corvinus (1440-1490). Aqui, segundo a reconstrução de Pierre Feydel (que transcreve incorretamente o nome do castelo), "Zaharoff (...) procedeu às 'iniciações'"[21].
Em um artigo da série intitulada La Dacie Hyperboréene, publicado em 1937 em "Études Traditionnelles" sob o pseudônimo Géticus, Vasile Lovinescu escreve a propósito sobre Janos Hunyadi ("Jean Corvin de Huniade"): "Ele passa por ter sido não apenas um rosacruciano, mas um Rosacruz"[22]. E acrescenta em uma nota ao pé da página: "Os teosofistas o tornam no Conde de Saint-Germain, o que é fastidioso. Mas não é possível que, logo depois de ter entendido certas coisas, o tenham interpretado a sua maneira fantasiosa? A verdade é que talvez os três personagens, Hunyadi, Rákóczi e Saint-Germain, foram enviados pelo mesmo centro"[23].
Um misterioso projeto de Zaharoff em Bucarest
Essa nota não deve fazer com que se pense que a relação de Geticus-Lovinescu com os teosofistas se tenha esgotado em disputas de ordem teórica. A partir das cartas de Guénon fica evidente que Lovinescu estava muito preocupado pelo fato de que elementos da Sociedade Teosófica queriam se envolver em uma iniciativa inspirada por Sr Basil Zaharoff e cooptá-lo para um misterioso grupo em via de constituição. Lovinescu, cabe lembrar, foi assessor legal da Siderúrgica Rescitza, a companhia romena que foi penetrada pela empresa Vickers, esta última controlada pelo próprio Zaharoff.
Em 27 de janeiro de 1936 Guénon escreve para seu correspondente romeno: "Vejo que o assunto B.Z. parece ainda mais sério do que pensava até agora; você por acaso acredita que o grupo projetado encontre os elementos necessários para sua constituição? Isso seria realmente perigoso; por outro lado, pergunto-me se você deve romper totalmente com isso desde agora mesmo, ou se não seria mais vantajoso que pudesse obter ainda outras informações..."
Em 24 de fevereiro Guénon retoma o argumento: "Agora deve-se acrescentar que há Estados ocidentais que estão manejados mais diretamente que outros por organizações pertencentes à contra-iniciação; e isso nos conduz mais precisamente à sua história de B.Z. Compreendo que essa lhe inquiete muito, conforme me disse nessa ocasião, pois há evidentemente algo anormal nessa maneira de buscar e adiantar coisas; como certamente você não fez nada para provocá-lo, a razão disso não aparece claramente; mas quem sabe se suas investigações sobre Dacia não terão algo que ver nisso? O que me parece que devemos temer acima de tudo, nessas circunstâncias, é que eles tentem espioná-lo e segui-lo em todos os lugares que vá; acredito que fará bem em dar atenção a isso; não observou até agora nada a respeito?".
As personalidades chamadas a ser parte desse grupo figuram em uma lista a qual Lovinescu chegou a ter em suas mãos; seus nomes, não obstante, ou são desconhecidos tanto para ele quanto para Guénon ou foram deformados com o objetivo de impossibilitar identificação.
Não obstante, Guénon tenta formular algumas hipóteses: "Não me surpreenderia muito -- escreve em 27 de janeiro -- no que diz respeito a Macdonald[24], devido a suas relações com Annie Besant (tinha a encarregado de um projeto de constituição para a Índia); sei também que Lloyd George tem pessoalmente relações muito estreitas com B.Z.; quanto aos demais, não posso dizer nada."
Em 6 de junho, retorna com a questão: "As notícias que você me fornece dos projetos atuais de B.Z. tampouco são verdadeiramente muito tranquilizantes; seria realmente curioso saber se vão designá-lo para formar parte deste grupo..."
Entre outras coisas, se sabe pela carta de 28 de agosto que Zaharoff tinha anunciado a chegada de um "Grande Instrutor" em coincidência com um melhor especificado "grande acontecimento astronômico".
A pessoa com a qual Zaharoff, nos parece, servia de intermediário para tentar atrair Lovinescu, é indicado por Guénon com a inicial D. Tratava-se de Anton Dumitriu (1905-1992), um professor de matemática que em 1934 se tornou assistente na Politécnica de Bucarest. Mircea Eliade (1907-1986) lhe dedica em seu diário de 1937 um par de páginas implacáveis; entre outras coisas, lemos: "Sabia que era teósofo e se proclamava a última incarnação do conde de Saint-Germain. Mais tarde me inteirei de que era um liberal e se interessava pela filosofia da ciência (...). Depois, em 1946, em Paris, eu soube que tinha vindo também ele, com uma comissão petroleira. Ele era muito rico e tinha perguntado a alguns romenos convertidos em parisienses: "Gastando um milhão de francos por ano, dentro de quantos anos pensam que posso comprar Paris?"[25].
O desaparecimento de Zaharoff
Lovinescu deve ter dado um suspiro de alívio quando se inteirou de que Zaharoff tinha morrido de fato, já que mais de uma vez tinha feito publicar nos periódicos a falsa notícia de sua morte. Em 10 de novembro de 1936, Guénon lhe escreveu: "A respeito de Z., talvez você tenha visto que recentemente correu um rumor de que estava morrendo e até mesmo de que tinha morrido já; por outro lado, esta já não é a primeira vez, e tudo isso fora desmentido em seguida (...)".
Cito novamente o Canto XVIII de Ezra Pound: "E Metevsky morreu e o enterraram, i.e., oficialmente, -- E se sentava no café Yeiner para ver seu enterro -- Em torno de dez anos depois deste incidente -- Era dono de um bom pedaço de Humbers (Vickers)"[26].
E outra vez, em 30 de dezembro: "Talvez saiba você que há dois ou três meses já se tinha anunciado a morte de Z., depois tinha sido desmentida (e não era a primeira vez); mas agora se assegura de que é certo (...)."
Por último, em 16 de março de 1937, Guénon informou a Lovinescu de que alguns desconhecidos tinham tentado abrir a tumba de Zaharoff, "provavelmente para confirmar a identidade do corpo."
Sir Basil Zaharoff tinha morrido na manhã do dia 27 de novembro de 1936 no Hotel de Paris em Monte Carlo. O Hotel de Paris era dele. E o Cassino também. Depois de ter concluído um pacto secreto com o príncipe Alberto I de Mônaco, Zaharoff tinha persuadido a Clemenceau a estipular com Sua Alteza um acordo que tinha logo desembocado no artigo 436 da Parte XV do Tratado de Versalhes. O Principado de Mônaco dessa maneira tinha conseguido uma autonomia total; não obstante, se o cassino de Monte Carlo estivesse em risco de quebra, França se comprometia a salvá-lo com uma contribuição financeira. Quando da morte de Alberto I, Zaharoff tinha se apoderado da Societé des Bains de Mer, que era a que dirigia a sala de jogos no Principado.
Com o desaparecimento de Sir Basil Zaharoff de cena, ele, que além de ser comerciante de canhões, banqueiro, petroleiro, magnata da imprensa, jogador de cassino, filantropo, agente de inteligência britânica e a charlatã reincarnação do Conde de Saint-Germain, tinha desempenhado, segundo René Guénon, um papel de primeiro plano no campo da contra-iniciação.
Notas
via Guenonecuador
Claudio Mutti: Fenomenologia della controiniziazione
http://www.claudiomutti.com/index.php?url=6&imag=1&id_news=251
[1] René Guénon, El reino de la cantidad y los signos de los tiempos. Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona 1997, pp. 172, 214, 231 y 232.
[2] La traducción al castellano de estas cartas se encuentra en la Revista Symbolos: http://symbolos.com/s17lov1.htm
[3] René Guénon, op. cit., p. 213 y 214
[4] René Guénon, El Teosofismo. Historia de una pseudoreligión, Ediciones Obelisco, Barcelona, 1989, p. 58.
[5] Paul Chacornac, La vida simple de René Guénon, Ediciones Obelisco, Barcelona, 1987, p. 69
[6] Paul Chacornac, op. cit., ibídem.
[7] La traducción al castellano de este documento se encuentra en la Revista Symbolos: Algunos recuerdos sobre Rene Guénon y Etudes Traditionnelles, http://symbolos.com/s19ined1.htm
[8] Marie-France James, Ésotérisme et Christianisme autour de René Guénon, Nouvelles Éditions Latines, Paris 1981, p. 307 nota e passim.
[9] Jean Reyor (Marcel Clavelle), Documento confidenziale su René Guénon, Edizioni Al-khâtamu al-dhahabiyy, Al-Qâhira s. d
[10] René Guénon: Cartas a Vasile Lovinescu (4): http://symbolos.com/s17lov4.htm
[11] Robert Neumann, Vita di Sir Basilio Zaharoff, Mondadori 1948, pp. 17-18.
[12] Robert Neumann, Vita di Sir Basilio Zaharoff, cit., p. 27.
[13] Ezra Pound: Cantares completos, Tomo I, Ediciones Cátedra, S. A., Madrid, 1994, p. 699
[14] Shaykh Abdalqadir As-Sufi, Tecnica del colpo di Banca, Le Rocce di Korsan, Genova 2002, p. 53.
[15] Ezra Pound, op. cit., p. 359.
[16] Shoghi Effendi, God Passes By, Bahà'ì Publishing Trust, Wilmette, Illinois, 1944, p. 392.
[17] Robert Neumann, Vita di Sir Basilio Zaharoff, cit., p. 196.
[18] A. L. Easterman, King Carol, Hitler and Lupescu, Victor Gollancz Ltd, London 1942, p. 23.
[19] A. J. Hamerster, The Count de Saint Germain: Who he was, "The Theosophist" (Theosophical Publ. House, Adyar, Madras), ott. 1934, pp. 66-72; nov. 1934, pp. 141-150; dic. 1934, pp. 290-292 e 589; maggio 1935, pp. 120-127; giugno 1935, pp. 240-247.
[20] Eugen Wolbe, Carmen Sylva, Leipzig 1933, p. 137.
[21] Pierre Feydel, Aperçus historiques touchant à la fonction de René Guénon suivis d'une Étude bio-bibliographique, Arché, Milano 2003, p. 86 nota 208.
[22] Geticus, La Dacia iperborea, Edizioni all'insegna del Veltro, Parma 1984, p. 64.
[23] Geticus, La Dacia iperborea, cit., p. 64 nota.
[24] "En la época del ministro Ramsay Macdonald [1866-1937, ndr], Mme. Besant elaboró un proyecto de constitución para la India y lo remitió al gobierno; dicho proyecto, que procedía del mismo espíritu que el de la institución del "Congreso Nacional Hindú", parece no haber tenido secuelas, al menos hasta ahora; pero el hecho reviste un significado muy particular cuando se sabe que los verdaderos hindúes cuentan precisamente a Ramsay Macdonald entre los "enemigos brutales y groseros de la India". (René Guénon, Il teosofismo. Storia di una pseudoreligione, cit., vol. II, p. 315, nota 18)
[25] Mircea Eliade, Memorii (1907-1960), Humanitas, Bucureşti 1991, vol. I, pp. 338-339. Sobre Anton Dumitriu, cfr. Claudio Mutti: Eliade, Vâlsan, Geticus e gli altri. La fortuna di Guénon tra i Romeni, Edizioni all'insegna del Veltro, Parma 1999, pp. 75-88.
[26] Ezra Pound, op. cit., p. 357.