domingo, 13 de dezembro de 2015

A Montanha Simbólica

Por Martínez de Pisón*


Resumo
A montanha contém valores de notável profundidade cultural em seus significados. Estão propostos como exemplos expressivos: 1º, o caráter analógico de determinados conteúdos da própria montanha e da aproximação ao seu sítio e à sua altitude; 2º, o sentido metafórico do vulcão na grande literatura europeia; 3º, o marcado símbolo espiritual da ascensão em nossa literatura; e 4º, a intensa interpretação religiosa de algumas montanhas da Ásia. Cabe, pois, ao interesse geográfico fixar-se e aprofundar-se em tais conteúdos, ainda que não estejam formalizados em seu restrito território como componentes do sentido das paisagens. Portanto, se o pensamento geográfico estabeleceu como limite de seu interesse específico um ponto prévio a esses conteúdos, o que ficaria amputado é o próprio conceito de paisagem.

  1. A montanha análoga
Há valores visíveis; explícitos nas paisagens, que convivem com outros ocultos, invisíveis, frequentemente tanto ou mais significativos. Estes requerem perscrutar aquilo que não está à vista. A condição oculta da paisagem é uma referência necessária de valor e determinadas paisagens ficam ás vezes estreitamente enlaçadas a essa carga simbólica. Assim, no valor oculto da ascensão reside o símbolo espiritual de seu itinerário e do encontro com o alto. O olhar se lança desde uma perspectiva que por acaso pode encontrar-se melhor nas bibliotecas e nos museus do que no próprio terreno. Há novelas que exploram esse mundo simbólico expressamente, como A montanha análoga, de Daumal, uma alegoria do diálogo interior com a natureza, cuja realidade é melhor que a fantasia, O Odor da Altitude, de Jouty, que remete inclusive ao inalcançável e inexpressável, mesclando a ascensão real e a espiritual pela paisagem própria do estranho, aonde a valia moral conta mais que a capacidade física, porque o cume verdadeiro não se corresponde com o cume material. Significam não só enlaces com aspectos sublimes da realidade senão mais concretamente com a cultura, ou com alguns de seus componentes específicos: por exemplo, o inexpressável da montanha envolve com Senancour, ou a mística da ascensão com suas metáforas poéticas. E assim sucessivamente. Estão sendo invocados aqui, com clareza para quem transite por esses mundos, ainda que sem dizê-lo, órbitas próprias das letras e das artes.

Porém, a ascensão da montanha real é sempre o percurso de uma paisagem, o percurso apropriado ao declive e à rugosidade naturais, no qual é preciso um trato direto com a paisagem, que opõem sua resistência e oferece suas possibilidades. Em todo o processo de ascensão se sopesam as forças e habilidades do ascensionista com as forças estáticas e dinâmicas da montanha.

Ao mesmo tempo, não é menos verdadeiro que há, ademais, uma constante experiência espiritual que pode tomar uma expressão religiosa, inclusive mística, presentes na literatura alpina de modo abundante. Mas a relação entre montanha e religião é ampla, mais ampla que o alpinismo, e tem suas raízes no mais antigo e profundo de nossa cultura. O Himalaya é chamado por isso a morada dos deuses. O Monte Kailash, no Transimalaia tibetano, tem um caráter religioso em si mesmo e como objeto de peregrinação esse caráter é ainda mais intenso e vigente, estendido a budistas, hinduístas e bon. O forte simbolismo destas montanhas e de seus chorten ou stupas, principalmente no budismo tântrico, adquire uma dualidade significativa da montanha como templo e do templo como montanha. A forma do chorten, além de seu sentido geral como túmulo e ponto de devoção, tem significados cósmicos estratificados da terra ao céu, de modo que sua base corresponde à terra e se refere a um tipo de saber, o da identidade, seu domo central é símbolo da água e do saber ver, seu mastro faz referência ao fogo e ao saber discriminar, sua culminação significa o ar e o saber dos atos, e finalmente os símbolos solar e lunar que o completam evocam o éter e a sabedoria da lei. O chorten é, pois, também um símbolo do eixo ancorado no solo, e que se lança ao céu. O nosso Teide foi considerado pelos clássicos como “trono dos deuses” e talvez como eixo do mundo entre os aborígenes. E sem falar do alcance cultural tão intenso dos signos mitológicos do Olimpo ou do Parnaso. A outra grande raiz da relação montanha e religião em nossa cultura procede dos conhecidos acontecimentos bíblicos do Monte Sinai. O Símbolo religioso da ascensão é, portanto, explícito, e prosseguiu em diversas propostas ascéticas ou místicas. A subida é então exposta como um método religioso e uma das maneiras de realizar a viajem da prova que leva à iluminação ou à revelação, que não são o mesmo. O ermitão significa genericamente o desejo de retirada, de afastamento na natureza e de adentrar-se na montanha, porque esta proporciona amplamente ambos requisitos: natureza e solidão. Desprovida destas a montanha deixa de ser, portanto, desde um ponto de vista simbólico e não só naturalista, um bem maior.

As raízes universais das relações entre altitude, montanha, ascensão e experiência religiosa possuem muitas de suas chaves catalogadas. Algumas, por Samivel, com a capacidade de sugestão tão característica desse escritor da montanha alpina, e com as numerosas referências eruditas que ele era capaz de aportar, nesse caso sobre as múltiplas modalidades que adotam as concepções religiosas da montanha na história e na geografia. Ao abordar o simbolismo da altitude demonstrava Samivel a associação primária entre o baixo -com menos- e o alto -com mais-. A altitude e a verticalidade, escrevia, são geralmente qualificadas positivamente, de tal modo que à altitude correspondem conceitos de transcendência e à ascensão, de progresso e crescimento. No alto se encerram signos do que é bom e leve, do que vence o peso, do celeste; o espiritual ascende; em contrapartida, a matéria pesa e a vida precisa lutar contra o peso. A elevação é, portanto, uma qualidade e o cume é o seu êxito, a vitória sobre os obstáculos materiais mediante um esforço, sua recompensa moral. Tudo isso sacraliza a montanha e a sua ascensão. É o esforço que consegue a entrada em um domínio alheio e aberto entre linhas aéreas -sugestão do infinito-, em espaços grandes, no distanciamento progressivo do basal e de seus labirintos. De modo que a dualidade baixo-alto se polariza em dois ambientes contrapostos, o alto como cenário de natureza, solidão e individualização; e o baixo como mecanizado, massificado e gregário. Tudo isso são modelos culturais. Mas o baixo também é o terreno, o mundano, o subterrâneo, inclusive o infernal e, em contrapartida, o alto é o celeste e o divino. Sem distanciar-nos, vemos o mesmo em culturas populares, em misteriosos ambientes exóticos, em difíceis poetas místicos ou no próprio Dante.

Ademais, está claro que há um sentido moderno da ascensão, impregnado de valores científicos, artísticos e exploratórios, que banham culturalmente e ideologicamente o ato de ascender à montanha. Na Espanha é o que aconteceu, em sua melhor versão, sobretudo por influência da Instituición Libre de Enseñanza (“Instituição Livre de Ensino”) no excursionismo, com sua qualidade particular. A soma de ambos os modelos e sentidos constitui o produto cultural que o alpinista recebe e mantém. Não vamos mais nos estender sobre esse aspecto, que requer um tratado próprio. Portanto, agora vamos nos concentrar em três exemplos muito característicos do simbolismo herdado e às vezes esquecido. Não são os únicos, mas são suficientemente expressivos para revelar a existência e a importância do lado imaginário de toda a montanha e, por derivação, irão auxiliar-nos na busca de outros aspectos simbólicos que pesam na cultura. Trata-se, portanto, de um percurso fugaz pela outra vertente da geografia dos objetos, que suponho também ser geografia, como transitar pelo lado oculto da lua, naturalmente, considerando que ela seja redonda e não plana.
  1. Primeiro exemplo: a erupção como metáfora.
Vamos começar com a raiz, com a origem simbólica da montanha no antro do fogo e do cataclisma. Não é exato, evidentemente, só é parcialmente verdade, mas assim tem sido prazeroso a mais de um poeta. Um caso é o de Gabriel e Galán, quem em Gredos escrevia: “Te engendrou trepidante o terremoto / [...] a terra te pariu de suas entranhas, / rugindo de dor em seu seio rompido. / [...] E transpiraste em teu alentar imenso / espirais soberbas / que cegaram o éter de fumo denso. / e tua louca infância, brava e ardente / envolveu-se em fraldas / que eram manto de lava incandescente...”. Não explicaria dessa forma a origem de Gredos, evidentemente, mas a licença poética nos serve perfeitamente para entrar no tema.

Nossa cultura nasceu junto ao vulcão. Os grandes mitos clássicos se associaram em casos como esse, com naturalidade no geográfico e com lógica no dinâmico, às formas vulcânicas e às destruições próprias das erupções. É o que se conhecia empiricamente nas forças terrestres presentes no mundo mediterrâneo e é o que transmitiram os escritores a seus contemporâneos e aos tempos posteriores. Logo se transportaram também no espaço ao aplicar-se por distintos descobridores em parte ao atlântico e ao continente americano. Vieira e Clavijo propôs, a modo de exemplo, “se as Ilhas Canárias foram parte da Atlântida de Platão”. A marca da cultura mediterrânea estendendo-se pelo Globo também estava composta por suas antigas considerações míticas e naturalistas, logicamente.

As referências a vulcões na mitologia clássica são, como se sabe, abundantes: nada mais explícito que Efestos ou Vulcano, deus do fogo profundo, como principio tanto criador como destruidor. A ativa proximidade do Etna, do Vesúvio, de Vulcano, entre outros vulcões, fará habitual sua presença na literatura, por exemplo, em Homero, Hesíodo, Lucrécio, Virgílio, e algumas de suas ideias iriam persistir até o Renascimento como explicação dos fenômenos telúricos, como no caso dos breves, porém insistentes, discursos expressados por Aristóteles com respeito aos terremotos e vulcões. As fúrias atribuídas aos Titãs no antro desde o século VIII antes de Cristo, o alento do Titã enterrado no submundo das sombras, nas profundas câmaras de castigo, serão as forças do Etna, vinculando contendas próprias dos homens, agigantadas, aos deuses e às forças naturais. E, ao ar livre, outro gigante elevado até que sua cabeça desapareça na altitude, o Atlante castigado, também haverá de suportar o céu sobre seus ombros. É, em suma, a figura do vulcão completo, com as raízes no inferno e sua cúspide celeste. O eixo, a coluna inquieta e viva do universo. A erupção, a força convulsa de sua base, é uma titanomaquia. De modo que, nesse drama –pois a terra é entendida dramaticamente-, a cratera central do Etna foi algo mais que o abismo em direção ao interior da Terra, o que já é inquietante: foi a órbita esvaziada do olho do ciclope. A via vertical, profunda, até a residência das fráguas nas cavernas, aonde se escutam as marteladas dos ciclopes. Deste modo, em nossa raiz a paisagem era pura força. Perto estava, não esqueçamos, do Vesúvio ameaçante, a paisagem imediata era o perigo. Podem ler Plínio o Jovem se acreditam que exagero.

Porém, como sabemos, há duas tradições culturais nossas acerca dos vulcões: aparte da cultura clássica está a bíblica, também alegórica, que se soma às anteriores raízes com sua própria intenção e seu âmbito, como chave de conhecimento, símbolo ou parábola bem influentes e que inclusive se estenderam por muito tempo na cultura popular (não agora, pois duvido que alguma dessas duas raízes possua um grande número de adeptos nesse momento). Tais lugares, clássicos e bíblicos, passaram a ser chaves, modelos de referência na linguagem cultural e ritos de viagem. Tal modelo cultural, como antes apontei, será levado com os europeus até a América, à Filipinas e aos arquipélagos, de modo que sua extensão não chegou a ser universal mas quase conseguiu. Ainda que não só em nosso continente e em suas prolongações culturais, mas em todas as partes, os vulcões foram interpretados a partir de conteúdos religiosos, e só é preciso dar uma volta pelo mundo habitado para acumular notas sobre essas atribuições, aqui nos bastará recordar agora dois cenários.

De um lado, em outras ocasiões destaquei como a Teofania da revelação a Moisés no Sinai parece descrever uma erupção: suas trovoadas, o estrondo, a nuvem densa que cobria o monte, o fogo ardente que abrasava o cume, “fumegando por haver descendido a ele o Senhor em meio às chamas”, o fumo que subia como se fosse de um forno. A imagem do vulcão em atividade. No momento culminante da revelação, portanto, o cenário reclama a força telúrica e o aparato do vulcão. E, por outro lado, na destruição de Sodoma não faltam tampouco ressonâncias aos efeitos destrutivos de algumas erupções. Além disso, as erupções serviram repetidamente, primeiro, para insistir no mesmo ensinamento: a interpretação do desastre natural como castigo divino aos pecadores. E, segundo, para evocar o inferno, cuja imagem se concretiza nas crateras incandescentes, nos piroclastos e na lava ígnea. Um autor espanhol piedoso muito conhecido chegou a pensar no final do século XVI se aquilo que se via em certas crateras ativas da América poderia ser realmente o fogo do inferno, e não lhe faltaram partidários. Para outros, de espírito mais prático, a dúvida residia em descobrir se tal magma era ou não ouro derretido. Como é compreensível, esse aspecto atraiu um número maior de pessoas dispostas a obter amostras e analisá-las. É evidente que ninguém pode comprovar com certeza suas respectivas hipóteses.

Mas sigamos até o âmago. Quando Dante ascende em sua viagem literária à montanha dos antípodas figurada como o Purgatório, diz que se trata do “monte que ao céu mais se eleva em meio às águas”. Na viagem ao Inferno, Ulisses havia contado que em sua navegação atlântica avistou tal montanha: “uma montanha obscura pela distância e tão alta como nunca havia visto outra”. A importância do clássico Atlas parece evidente, e a companhia de Virgílio se enlaça com a raiz cultural, mas a montanha é sobretudo uma referência com conteúdo ascético cristão e a moral localizada na sombra de uma referência imprecisa na época de uma alta montanha erguida sobre o oceano. E como sua culminação leva ao possível acesso ao Paraíso, tudo se reúne, a raiz profunda cuja entrada é uma caverna que acessa os andares do Inferno até o centro da Terra, enquanto a montanha imprecisa de maneira oposta leva até às nuvens e ao céu na altitude. Essa geografia sem fundamento orográfico, baseada nas máximas clássica e religiosa de interpretação simbólica da montanha é, no entanto, um fundamento clássico de nossa cultura. Como essa montanha imaginária elevada no Atlântico tem todas as probabilidades de estar baseada em uma imagem geográfica um tanto apagada do Teide, própria do século em que foi escrito o poema, podemos nos permitir aceitá-la seguramente entre os vulcões e suas metáforas.

Mais tarde há outras traduções literárias deste tipo e há uma que possui suficiente envergadura para que ao menos possamos mencioná-la brevemente nesse texto. Trata-se da aparição de imagens vulcânicas no Fausto de Goethe, em oposição alegórica com as paisagens alpinas. Os Alpes alegres mostram o pulso da vida como um ensinamento, enquanto o antro infernal, do fogo eterno com o “acre denso do enxofre”, provém da demolição, dos escombros da montanha, de modo que aqui, mais uma vez, mas a seu próprio modo, o vulcão desolado é novamente metáfora do Diabo, mas nesse caso porque nada conhece da maneira esperançosa de ver o mundo. Século após século, a montanha volta a ser, de uma maneira ou outra, repetidamente tanto rocha como metáfora.

Não deixa de ser agradável e instrutivo passear pelas geografias de Homero, de Dante ou de Goethe. Deveria o geógrafo abster-se disso?
  1. Segundo exemplo: a metáfora espiritual
Parece-nos conveniente dedicar aqui mais uma vez, de maneira breve, ao menos para quem não haja lido nossos velhos trabalhos, uma referência especial à imagem tradicional que possui em nossa literatura o símbolo da ascensão. Essas questões possuem, com efeito, sua medula literária fortemente arraigada em nossas letras, concretamente em São João da Cruz, e em seu centro a Subida do Monte Carmelo, obra escrita entre 1578 e 1582. A referência geográfica ao Monte Carmelo se remonta aos ermitões da época das Cruzadas, instalados no século XII na franja deste monte, situada em Haifa, próximo ao mar e que alcança os 600 m. de altitude. Logo, a visita ao Monte Carmelo foi sendo incluída de modo habitual no caminho dos peregrinos à Terra Santa, entre os lugares de Jerusalém, Nazaré e São João do Acre. Mas tudo isso não é mais que um ponto de arranque. Trata-se, mais uma vez, no que elegemos aqui, uma geografia simbólica, de grande entidade literária, que joga com seus elementos como se fosse uma base real, mas evidentemente com absoluto distanciamento de uma análise ou de um guia alpino.

A subida, o escrito do poeta, tem uma boa parte de seu sentido gravitando na montanha como metáfora espiritual. Esta obra contém um sistema de chaves expressado por todos os meios: desenho, comentários, poesia e prosa. A ascensão é utilizada como símbolo com intenção explicitamente ascética e mística, ainda que tais atributos acabem por impregnar a ascensão real com caracteres sublimados. São João fala da ascensão simbólica, e a ascensão real se contagia com tais símbolos.

O gráfico que acompanha o texto permite hoje, que se faça inclusive uma leitura montanhista dos valores espirituais da ascensão ou uma leitura religiosa de seus valores montanhistas ou uma leitura literária de seus valores poéticos. O croqui do santo está exposto como um esquema de ascensão moderno, com as vias de escalada em direção ao cume e seus comentários, como poderia ser um bosquejo alpinista. Além disso, o croqui foi desenhado pelo próprio escritor, inicialmente de modo esquemático, ainda que logo os carmelitas o tornaram mais elaborado nas edições sucessivas, com maior realismo, mas sem variar as bases topográficas fundamentais nem o percurso nem as intenções espirituais do santo poeta.

O desenho está composto sobre uma citação do Evangelho: “que restrita é a porta e quão estreita é a senda que conduz à vida eterna”. O croqui representa, por isso, o itinerário gráfico da ascensão, com suas chaves espirituais. Uma observação geográfica de seus componentes internos nos permite decompô-lo em andares sucessivos. De baixo para cima, eles são: Colinas basais, com caminhos e senda. Montanhas desnudas intermediárias. Montes com árvores espalhadas. Escarpa pronunciada e elevada. Colina superior com arbustos. Cume arredondado. Iniciemos a marcha: na base do monte há três caminhos possíveis, o do “espírito imperfeito”, o do “espírito errado” e o da “senda estreita da perfeição”, a via difícil, a escalada monte acima, fora dos caminhos trilhados. Cada qual tem seu guia de itinerário e possui seu valor e recomendação. Em suma, o caminho central é o correto, a chave do monte, mas tal caminho está justamente onde não há caminho, só a senda estreita. Despojado de superficialidades, consistirá no essencial. O piso intermediário alcançado tomando somente a direção correta é a montanha desnuda. Pela senda estreita se chega aonde não há nada. A via de escalada se adentra e atravessa o “monte-nada” e se dirige diretamente ao cume, e o desenho adverte “já por aqui não há caminho”. E acrescenta, “que para o justo não há”. A leitura espiritual é a da solidão interior. Mas a leitura da ascensão é a da rota diretamente pela montanha desnuda como quadro de realização pessoal, com suas exigências de negação, esforço, risco e renúncia. A isso se segue uma faixa superior de árvores com uma escarpa. As virtudes desta parte do percurso são, entre outras, fortaleza, prudência e temperança. As referências virtuosas se tornam abundantes e sem elas não haveria passagem em tal ponto. Desde o ponto de vista religioso são essas virtudes sustento e alcance. Desde o ponto de vista da escalada parecem objetivos, e também assistências e condições daquele que ascende em sua relação entre a fortaleza própria, a vinculação reta com sua equipe e a resistência do lugar. Ao término superior da escarpa fica a depuração espiritual transpassando o obstáculo. Como culminação, por cima da escarpa, estão finalmente uma colina superior e o cume. Na ampla colina elevada e suspendida “só mora a glória e honra de Deus”. É o fim buscado, a meta, a união com Deus, o estado de perfeição e, de certo modo, a recompensa moral do escalador. Isto é, se consegue um sentido espiritual explícito e máximo.

Essa leitura montanhista da “subida” de São João que acabamos de fazer contém um valor literário e teológico oculto, geralmente inconscientes, mas com frequência bastante latente nos valores habituais da ascensão do monte. Conhecê-lo, portanto, só esclarece acerca das qualidades escondidas em nossos atos, insólitos e rituais, e de nossas paisagens. E São João conclui: “dessa maneira, desnudo, encontra o espírito quietude e descanso... no centro de sua humildade”. Por isso escreveu: para evitar que as almas não entendam “por falta de guias idôneos e corretos, que as levem até o cume”. Deste modo manifesto, São João executa a primeira “guia” de ascensão a uma montanha em língua espanhola, guia sem dúvidas profundamente espiritual e simbólica, nem prática nem geográfica, mas cuja luz transcende no “como ir”, tanto a Deus no religioso, com voz direta, como à montanha no profano, como eco cultural. Ou a ambos simultaneamente.

Podemos nos permitir ler, então, só as guias de por onde ir e não de como ir? Os significados profundos das coisas nos escaparão ou não, mas depende do quão importante é isso para nós; tudo reside, portanto, na trama do enredo teórico do geógrafo, de maneira que só se crivem dados territoriais ou que sua ferramenta permita passar também os símbolos e conteúdos que constroem a profundidade das paisagens.
  1. Terceiro exemplo:
Quando se viaja e quando se lê aprende-se que, no âmbito em que temos discorrido, as montanhas sagradas se estendem pelo mundo inteiro. Tomavam ou tomam diversos modos religiosos, naturalmente, e por isso convém observar igualmente os cumes distantes, em outras cosmogonias tradicionais. Antes apareciam em quase todas as culturas e ainda seguem sendo invocadas e cultuadas em montanhas distantes e símbolos devotados a elas encontram-se inclusive nas que estão próximas. Na Ásia estão presentes frequentemente, mas são encontradas igualmente na África, na América, em ilhas distantes. São montanhas sagradas, algumas tão famosas como o Everest, o Kilimanjaro ou o Monte Fuji. Entretanto, montanhas europeias muito significativas, como o Aneto e o Cervino, que são estritamente sagradas, concluem com uma grande cruz superior cujo simbolismo é evidente. E há certas montanhas que adquirem caráter sagrado de modo especialmente intenso, como ocorre com o monte Kailas, no Tibet.

Porém, na ampla continuidade geográfica entre o Tibet e Qinghai, por cima dos altiplanos que vão do Himalaia ao Kunlun, se estendem as cordilheiras de outras montanhas que participam de similares modos de entendimento e de expressão religiosa, como nas digitações do Kunlun e os sistemas transversais de Hengduan. Entre elas há um translado de conceitos e rituais, ainda que invocados de maneira particular ou conformando representações de deidades específicas. O modelo é o Kailas, como pilar do mundo cujo topo sagrado é intocável, mas há muitas outras que constituem centros espirituais de similar intensidade. Entre elas, no espaço mencionado, devemos unir ao Kailas (6.714 m.), no Transimalaia, ao menos o Meili ou Kawakarpo (6.740 m.) e ao Gongga Shan (7.556 m.), ambas na cordilheira Hengduan, e ao Amne Machin (6.282 m.) no extremo oriental do Kunlun. Há mais pela região, porém, não tão intensamente consideradas, na atualidade, como montanhas sagradas e inclusive divinas. Ao possuir características simbólicas tão profundas, ao menos as mencionadas devem ter seu lugar neste escrito, ainda que de maneira concisa.

Tanto no Tibet como em Qinghai há uma profusão de templos, em geral templos budistas que se encontram ativos. Alguns, como o de Kumbum ou Taersi, é um monastério de lamas de grande entidade, indicador de sua potência real na sociedade local, de sua influência espiritual e de sua persistência apesar das inúmeras tempestades da história recente da China. No entanto, além destes centros monásticos, as próprias montanhas são núcleos de religiosidade, com suas duras peregrinações ao redor dos montes que atraem a numerosos fiéis. Nem todas essas marchas ou “koras” são de idêntica exigência física: algumas são tão pequenas que só supõem uma volta ao redor de um chorten; algumas são de distância média, por exemplo, ao redor do monastério de Kumbum; algumas são grandes, como ao redor de uma montanha, que pode ter grandes desníveis, alcançar altitudes elevadas e, como a do Amne Machin, prolongar-se por 180 km de percurso. De modo derivado, em função da carga espiritual da montanha podem aparecer também monastérios locais, altos, isolados, em um vale alto do maciço Meili, em uma elevada plataforma junto ao Gongga Shan ou ao pé do Amne Machin, que são os centros espirituais dessa montanha tutelar, desse deus protetor feito montanha.

Entretanto, essa inserção da montanha na paisagem geral não é tudo. Os tibetanos leem suas paisagens de amplos horizontes também com referências espirituais, e de fato estão repletos de lugares santos e simbólicos que ordenam os espaços com significados transcendentes. O território tibetano é entendido mediante constantes dualidades: o alto e o baixo, cume e vale, sombra e luz, casa e porto, e nele há uma série de símbolos espirituais que o enriquecem de ordem e de centros significativos. Esses centros ou lugares principais que concentram valores e a partir dos quais se dividem os demais, são frequentemente montanhas com características divinas. O Kailas inclusive ordena o mundo inteiro, reúne a geografia mítica da Ásia e agrupa os espíritos de meio continente. É um formidável relevo, um indivíduo geográfico sobressaliente, pilar do mundo, é fonte de águas que se dispersam por tal continente em todas as direções, é o centro de uma mandala expressiva da harmonia do cosmos, está composto por quatro faces invioláveis que guardam os espíritos do solo e que possuem portas imaginárias para o mundo subterrâneo aonde habitam forças complementárias, e seu vértice se prolonga no céu em uma pirâmide inversa, intangível morada dos deuses. Ademais, cada detalhe, cada recordação, cada caminho, cada pedra, cada contraforte possui um significado religioso próprio. Essas montanhas não são, portanto, simplesmente conglomerados amontoados e abertos pela erosão glacial pleistocena; essas montanhas condensam o espírito complexo da espiritualidade da Ásia.
As peregrinações que circundam ao redor das montanhas são realizadas por centenas, inclusive milhares de fiéis hoje em dia, que podem remontar a colinas situadas a mais de 5.000 m. de altitude. Normalmente são feitas a pé, às vezes a cavalo, em certas ocasiões com prosternações contínuas. Deixam oferendas, repetem mantras, dão voltas no moinho de orações, atiram ao ar estampas do cavalinho do vento ou sopro de vida à galope, estendem bandeiras com as cores do céu, das nuvens, do sol, da água e da terra, impressas com preces e imagens de cavalos, que são agitadas pelos ventos da colina, rodeiam no sentido da esquerda os túmulos de pedra, que possuem o gravado: “Om Mani Padme Hum”.

Além da kora do Kailas, as mais renomadas são as do Kawakarpo e do Amne Machin. Kawakarpo é em realidade um deus benevolente, porém zeloso de seu retiro nas alturas e aqueles que o veneram não desejam que seus recintos, gelos e cumes sejam perturbados e nem profanados por estranhos. Ele é representado armado sobre um cavalo branco e é o dono do trovão. Igualmente, a divindade do Amne Machin é equestre, vigiando do alto com sua família divina, e protegendo aos pastores de yaks que vivem a seus pés. Conta-se que quem contemple o pico do Gongga Shan (só o podem ver os corações puros) ficará limpo de pecados e sua vida será então como um renascimento. Tais montanhas personificam, portanto, um “poder tutelar”, são a encarnação de uma divindade, de modo que cada uma é uma montanha-deus individualizada, ainda que todas possuam características similares.

Na origem desta doutrina está também a ideia tão comum da montanha cósmica, o eixo do mundo ou, ao menos, da região circundante. Sabemos que é próprio de diversas culturas o princípio do eixo do mundo aplicado a montanhas concretas, destacadas e inacessíveis, colunas do céu e centros de organização espiritual das coisas do território, mas a força que adquire esse conceito no Tibet é bastante especial. Este papel, similar ao do Kailas em escala regional, foi atribuído, por exemplo, ao Amne Machin pelos goloks que habitam seus flancos. Segundo as suas tradições, sua culminação tocaria a lua e o sol enquanto sua raiz se afundaria na profundidade subterrânea. É portanto, como a figura de um chorten gigantesco. Esse eixo, tão alto, iria cobrir-se de cristal que serviria de relicário gigantesco do deus denominado Machin Pomra, que estaria pelas cumes acompanhado por centenas de seus irmãos, concretizados fisicamente pelos cumes secundários repartidos profusamente por todas as suas arestas. É possível, portanto, fazer um mapa da família divina.

Logicamente, ideias tradicionais semelhantes de sacralização das montanhas se estendem pela cordilheira de Kunlun, aonde também reaparece outro eixo cósmico, dessa vez com sentido geográfico e fundo espiritual. No cume, já celeste, habitaria “O Uno”, imortal, ou em outras ocasiões, a deusa da imortalidade, ou ali se guardariam as espadas protetoras que vencem aos maus espíritos. O fato é que isso também é uma montanha paralela que eu vejo, e é a mesma que vê quem está ao meu lado. O que ocorre é que, se faço um esforço, eu posso também entender a sua montanha sem esquecer a minha.

Enfim, há nessas montanhas uma geografia religiosa muito intensa própria desses lugares, razão pela qual emigraram as ilusões, fazendo-se locais, mas não são diferentes das ilusões universais dos homens, decantadas em histórias, lugares e personagens individuais. A montanha dirige o espaço no interior dos homens. A paisagem é entendida então por suas histórias, por suas vontades, por suas respostas, em um tecido que se plasma em comportamentos. Ao protetor dos homens, ao deus-montanha, lhe corresponderá enfrentar ao tenebroso. A ti, o respeito. Tudo isso e muito mais ensinam as montanhas simbólicas, muito além de sua materialidade tangível.

Se trataria então de abarcar todos os conteúdos? Se uma parte dos homens, quando aceita valores espirituais na paisagem, vive mais perto dos que estão ocultos, mas se movem em ativos fios invisíveis, do que daqueles que poderiam decantar apreços culturais de outra ordem, aonde deveria se deter então o pensamento do geógrafo? Eu intentaria chegar até o fundo. Creio que, depois do que foi dito, me acompanham razões muito boas.
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MARTÍNEZ DE PISÓN, E. (2009): “Valores escondidos de los paisajes. Calidades ocultas de la ascensión a la montaña”, en MARTÍNEZ DE PISÓN, E. y ORTEGA CANTERO, N., eds. (2009): Los valores del paisaje. Madrid,
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* Tradução de Maurício Oltramari

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